Speculae
Hélio Rocha
Em memória de H. M. Tomlinson,
viajante-prosador que pensou criticamente
seu mundo e o do outro,
o do nativo viajado.
Quando Tomlinson estendeu o mapa da Amazônia brasileira por cima da polida mesa de mogno do navio Capella, lampejos de luz amarela, azul e carmesim imediatamente começaram a brincar no traçado amplo e azulado, que demarcava o rei dos rios no mundo: o Amazonas. Todos os seus não menos magníficos e lustrosos afluentes, com seus barrancos alaranjados e pontuados, aqui e ali, com pedrinhas da cor de esmeraldas e diamantes; com o verdor vivo das sumaúmas, seringueiras, castanheiras, mulateiros e demais vegetais, com seus troncos reluzentes e sedosos, com os cipós distendendo-se da copa até as águas amareladas e convulsivas, esparramando exuberantemente suas plumas incontáveis, pendentes dos galhos frondosos cheios de ninhos de filhotes de passarinhos de inúmeras espécies; e com as casinhas brancas dos nativos enfileiradas, meio que suspensas das águas; tudo isso flutuou instantaneamente na mente encantada de Tomlinson. Era daquela carta geográfica amassada e encardida pelo tempo, que ele visualizava o mundo com seus problemas e suas belezas, as guerras e a poesia, o nascimento e a morte, e imaginava a si mesmo como um tronco com membros distendidos e formidáveis e, no alto, a origem de todos os sonhos da infância: uma mente suprema capaz de escrever as páginas douradas de seu tempo e de sua própria alma.
"Porém, agora, como um homem que já seguiu a procissão dos dias e das noites, e já acompanhou por certo tempo essa procissão dos anos e, como uma chama flamejante e esticada com seus vendavais e tempestades, aproximo-me da entrada que me conduzirá ao lugar do sol constante; para as terras de outros viajantes, entre eles o famoso Orellana e sua comitiva enlouquecida; Bates e Wallace, com sua coleção de borboletas carmesim; Spruce, Spix e Martius, Wagley e do renomado Humboldt, o pai discursivo da Amazônia; de onde me colocarei para pensar o mundo e a mim mesmo. É aqui meu promontório seguro" – pensava Tomlison.
- Não vejo uma entrada sequer para aquele lugar dos meus sonhos: os trópicos. As muralhas estão em todo lugar. Nuvens azuis, cinzentas e avermelhadas protegem a entrada do Éden, só pode ser – disse Tomlinson para seu amigo Hill, um texano que espreguiçava-se sobre a balaustrada do tombadilho, enquanto baforava em seu cachimbo prateado e se imaginava voando como uma gaivota estridente nos céus daquelas águas barrentas.
- É, companheiro, parece que os deuses dos trópicos não querem que encontremos seus santuários cintilantes – respondeu Hill a seu amigo e companheiro de jornada.
As águas escorrendo de um lado e de outro do casco daquele navio estranho ao cenário, como os véus esvoaçantes de uma noiva que entra, atrasada e sorridente, numa igrejinha rústica, cercada de jardins floridos e casais felizes sentados em bancos de mármores dispostos em volta de uma pracinha graciosa das cidadezinhas da terra das Amazonas; o sol, arremetendo seus raios dourados por entre os cirros azuis, onde querubins tinham suas faces e suas asas resplandecentes ofuscadas por um clarão invisível aos olhos tão meramente humanos, estendendo sua luz rejuvenescedora até as casinhas mais distantes em cima daquelas fitas flamejantes de barro vermelho, com suas almas cantarolantes dentro delas; e o canto das gaivotas barulhentas rasgando o silêncio ensurdecedor do Amazonas; tudo - tudo isso era música aos ouvidos daquele ser que, de instante em instante, aprendia e guardava consigo os segredos da vida e da morte. Não. Não eram segredos de morte - repito. Eram enigmas celestiais ocultos às almas de estirpes desprovidas de sentimentos nobres e sublimes. Caminhava para o Paraíso. Disso ele tinha consciência.
Assim, cansado de escanear procurando o portão do Jardim do Senhor, Tomlinson deitou-se em sua rede atada debaixo do toldo do tombadilho e começou a ler um livro que havia comprado em Belém do Pará. Era um livro com uma capa dura e nela a imagem de uma mulher indígena com perfurações no corpo, de onde escorria a seiva da vida. Com letras garrafais o título – Inferno Verde, de Alberto Rangel. No mesmo instante, Tomlinson percebeu que Humboldt tinha sido ouvido plenamente. Não foi assim que ele havia concebido a Amazônia? Como Green Hell?!
- Para o leitor, aquela imagem deveria ser compreendida como uma Hervea Brasiliensis, de onde o seringueiro extrai o látex; ou o sofrimento dos povos da floresta; ou a colonização das terras estrangeiras pelos europeus; ou o assassinato lento da Mãe-Natureza? - pergunta-se Tomlinsom.
Continuou lendo. De repente, ouviu um grito que vinha da ponte de comando. Colocou-se de pé imediatamente, enquanto o livro caía esparramado no convés. Um dos timoreiros avisava que a ilha de Jurupari estava à vista. Tomlinson não se conteve. Correu para a ponte de comando. Sabia que dali era que vinham os sonhos.
O "Capella" prosseguia suavemente cortando as espumas flutuantes, como as pedras dispostas em meio a uma catarata fazem com a correnteza, e finalmente ancorou a uma certa distância da margem.
Tomlinson erguia-se no ar como um beija-flor que paira com suas asas coloridas tornando o próprio ar visível. Podia ver todo o mundo, como numa visão edênica.
As paredes do mundo alargaram-se e ele podia ver a uma grande distância.
Barry continuava com seus funis de fábricas fumaçando um vapor negro e doentio. As ruas lamacentas de Swansea continuavam cobertas pela neve derretida e pó de carvão. Uma fileira de navios ancorados nas margens lúgubres de um cais quase indistinto pela neblina do mar. Londres com suas docas sombrias transitadas pelos marinheiros e carregadores escravizados pelo sistema que, na opinião de Tomlinson, era implacável e destruidor. Leandenhall e Fleet Street ainda estavam abarrotadas com lojas, tabacarias, bares e por homens, mulheres e crianças que vagavam apressados, como que perdidos em um mundo estranho e devorador. Wall Street também. Liverpool, Java, Índia, Jamaica, Martinica e todas as outras ilhas, países e cidades, Tomlinson podia visualizar. Pensar é ver, afirmava para si mesmo. Dificilmente, havia uma imagem valiosa naqueles lugares. Isso ele via, e sentia um pavor arrepiante e fúnebre, como aquele caixão negro que viu quando criança. Uma velha senhora morrera na casa ao lado da dele. Jamais aquele vulto negro saiu de sua mente, por mais que se esforçasse.
Ali na região amazônica, Tomlinson ainda via os caboclos remando em suas pequenas e possantes canoas atravessando as águas reluzentes, mas pareciam nunca alcançar a outra margem. Perdidos nas águas. Oh! As águas do Madeira!!
Esforçou-se para ver o que havia na França, na bela Paris, mas tudo estava envolto em neblinas. Um ninho de nuvens escuras parava em cima da cidade dos sans-cullote. Eram homens que lutaram na Revolução Francesa e não usavam aqueles calções amarrados aos joelhos usados pela nobreza, mas calças de algodão, daí receberem esse estereótipo. Sabia disso, porque lera em um jornal londrino, o Morning Leader, há muito tempo. Também sabia que não havia mais conserto. Que o mundo era uma grande ilusão. A vida só tinha sentido com aquela compreensão da procissão dos dias e das noites terríveis, ao longo dos séculos. O fim estava decretado desde o início. Afinal, a deusa Átropo - com a tesoura do tempo - podia cortar o fio da vida a qualquer instante e daí ficaria para sempre embalando-se na constelação de Orião. Brincaria com Sirius com as Plêiades a lhe sinalizar o caminho. Podia visitar a Ursa Maior, de vez em quando.
- Ah!
Um grito a bombordo o tirou do sonho esplendoroso. Tomlinson pulou da rede e correu para o castelo de proa do navio. Não mais havia ninguém. Ouviu vozes vindo de cima, sussurrantes:
- As estrelas consomem diamantes, companheiro! Tudo bem? - disse a voz ao seu lado.
- Está tudo bem. Vocês são meus familiares! - respondeu.
Tudo em volta estava parado. Podia ouvir o próprio fluxo de sua vida. Olhou para o alto e em volta do navio, as marcas nas paredes não lhe deixavam dúvidas. Estava nas costas do mundo e ali permaneceria eternamente.
As marcas de um mundo agonizante estavam em todo lugar. Vê-las não era sinal de uma consciência latente, mas simples questão de sutileza e grandeza de alma - o sublime era esse eco. A sua alma era simplesmente um speculum plano. Interior e exterior revezavam-se num fluxo contínuo. Ah! As noites! Os dias! E os Poetas! Oh! A Selva amazônica! Ah! O Oceano! O próprio Eu-viajante esparramando-se e chocando-se em seus limites - o infinito. Ah! Ele é o Mar!