No Orto do Éter (inspirado em Fernando Pessoa)
À porta da casa da Quinta do Orto, um homem suspira. Tem a mão grudada na maçaneta e hesita entre o abrir e o manter fechado. Bem sabe que não importa a escolha que faça, mesmo fechada a porta se mantém aberta pelo simples desejo que ele teve de abri-la. Mesmo antes, sem que o desejasse, sem que nem soubesse da existência da porta, pois ela estava lá, ainda que invisível ou ignorada a seus olhos fechados.
Precisa entrar. Entrar é a única maneira de sair... Ele não gira a maçaneta, mas abre a porta e entra.
Atrás das lentes dos óculos os olhos se fecham, pois a escuridão interna é ofuscante demais. É preciso acostumar-se aos poucos com esse brilho que emana das trevas. Só ali, no escuro, é que ele aprenderá a ver e olhar. É ali, no escuro, que ele encara seus sonhos e acorda.
Não há mais o caminho percorrido dantes; já foi esquecido para que possa ter a chance de ter sido real. A porta fechada atrás dele (que porta?), deixa lá fora (lá fora onde?) um mundo (que mundo?) do qual não precisa (quem?). Tudo o que ele precisa está ali, nesta casa escura que recende a éter. Ele precisa ter o éter. E ter o éter é ter e ter éter infinitamente, se é que o infinito existe.
Um largo corredor estende-se à sua frente e à sua volta. Um corredor que tem seguramente dois lados. Em cada lado aparecem portas. Estão todas trancadas. Estão todas abertas. Por esse corredor ele caminha sem ver as portas, mas olha o que há por trás delas; olha para não ver, olha para não pensar, olha para não sentir, olha apenas para olhar.
Em uma porta há uma criança que lhe acena do alto de um monte e grita “Ave atque vale”. É a porta que aponta para a eternidade de um lugar que já se foi.
Na outra há palavras escritas pela mão de alguém que decididamente é louco já que as palavras formam frases e as frases possuem algum sentido. É a porta para a qual poucos olham impunemente e os que tentam traçar-lhe um significado a vêem fechar-se com violência diante de si.
Mais uma porta mostra um homem diante de uma folha em branco, ele a lê. É a única folha que realmente tem algo que vale a pena ser lido em tudo aquilo que fala sem dizer nada.
Na seguinte há um velho cercado de relógios que não funcionam e se dizendo sem tempo. No tempo sem tempo, no tempo depois do tempo da velhice o homem pode encontrar-se, pois é ali, naquele quando, que ele se perde.
Ele continua passando pelas portas e olhando cada uma com seus horizontes e imagens guardadas. Ruídos de engrenagens, risos, caminhadas, olhares, paisagens, rugidos, fugas, segredos não guardados, um Deus que não existe e que é feliz por isso, procissões, corações dependurados no teto, inocências que se perdem e que se cruzam, versos, inversos, reversos, controversos...
No fim do corredor uma escada guardada por gatos brancos adormecidos e orvalhados se ergue e se espirala rumo ao teto já escuro.
Ele está muito ansioso por subir e se esquece que deixou a tal porta do outro lado do tal corredor destrancada, que o vento a abrirá e que a escuridão interna ofuscará a claridade opaca de algum caminho que, se é que existiu, o homem percorreu e já esqueceu.
E ele sobe.
Enquanto sobe sente que a escada desce, e ao sentir isso acaba pensando na escada e por um momento ela desaparece. Só deixando a escada de lado é que ela retorna aos seus pés, livrando-o de uma queda espetacular.
No topo da escada há uma última porta, guardada por figuras entalhadas que lhe recordam tempos idos de uma época que não conhece, mas que pulsa dentro dele com as recordações mais nítidas.
Com um leve empurrão ela cede. Cede e revela uma sala em que há um homem. Seu olhar não é comum. É o olhar de alguém que não vê enquanto olha, que não pensa enquanto vive, mas vive como anda e anda como vive.
Ele está deitado nos joelhos de uma criança eternamente humana e menino que lhe acaricia os cabelos e lhe canta canções de acordar. O homem que olha não sabe que o homem que dorme sonha e que em seu sonho há um homem que suspira com a mão na maçaneta da porta da casa da Quinta do Orto.