O Espelho

Infeliz é o espelho, que mostra tudo o que precisa ser visto com precisão e justiça perfeitas. E ninguém vê.

Pobre do espelho, que permite ao homem observar a si mesmo e ver o resultado de toda sua trajetória. Mas ninguém vê.

E ela, como todos nós, nunca entendeu a importância do Espelho.

Aqueles breves momentos diários, direcionados para a manutenção estética da 'casca', nunca significaram muito, pois assim como para todos nós, para ela o espelho não passava de uma ferramenta. Útil? Sim. Indispensável? Jamais!

E um dia, ela viu o que ninguém mais vê.

Coração dilacerado por decepções, comuns a todos. Na busca de um refúgio, para dar vazão à tempestade que lhe perturbava o equilíbrio, ela se vê diante do espelho. E sua primeira reação foi a de se afastar daquele reflexo, daquela reprodução tão fiel de seu atormentado estado de espírito. Mas o espelho a chamou. E ela ouviu.

E o espelho a apresentou a si mesma.

E o espelho refletiu, em seu semblante, a crueldade do Sistema, traduzida em sua fisionomia. Mas aquilo distorcia de tal forma sua face, que ela mal reconhecia a si mesma. E o espelho foi capaz de suavizar sua expressão.

E o espelho refletiu, em suas lágrimas, as lesões provocadas pelo Sistema, lesões essas que assassinavam pouco a pouco sua essência. Essência? O que era aquilo? Ela secou as lágrimas, e no anseio de explorar a fundo, através do reflexo, a sua própria intimidade emocional, olhou-se bem fundo nos olhos.

E o espelho refletiu, em seus olhos, uma pureza que há muito não percebia. Quiçá algum dia essa essência possa voltar a se manifestar no mundo real, sem o medo de que o Sistema, carrasco em sua natureza racional e egoísta, mutile o que ainda resta de pureza e inocência na alma humana.

Rafael Kerner
Enviado por Rafael Kerner em 19/08/2009
Reeditado em 01/10/2014
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