FRAGMENTOS E CISMARES 24
[ RE-SAUDADES]
Ruas e ruas embaralham-se na minha cabeça.
O coração distende-se e se aperta nas lembranças.
Chora enquanto árvores antigas movem suas folhas neste tarde fria, cara de São Paulo da minha infância e juventude.
Meus pés descalços experimentam as texturas do solo, os olhos se ferem com a lufada de vento e pó, os braços se abrem e esperam a chuva. Querem abraçá-la!
Campo Belo. Tempo de bairro florido, o aroma dos eucaliptos nas manhãs sempre enevoadas, o padeiro na porta às seis horas em ponto, as canções caipiras no radinho da cozinha,enquanto meu pai fervia o leite e preparava o café, o som do atrito das rodas do bonde contra os trilhos (inesquecível!), bonde que fazia ponte entre a casa e a escola, o percurso de mãos dadas com o primeiro
namorado após as aulas... Namoro escondido!
O almoço diário em família. Todo mundovoltandodas aulas, meu pai chegando apressado e desvestindo o paletó para logo sentar-se à mesa. Algazarra e confusão, uma das minhas irmãs ainda muito pequena. Minha mãe sempre bem disposta. Ou ao menos esforçava-se para estar...
E começavam algumas reclamações que giravam em torno do bife, que deveria ter sido ou mais ou menos frito, do suco, que tinha ou muito ou pouco açúcar, a turma que gostava de arroz mais soltinho contra a que gostava dele mais empapadinho... Xi, mãe, não gosto disso...
E assim íamos. Numa família de seis pessoas não era fácil agradar a todos!
Da soleira da porta da cozinha, Rebeca nos espiava. Quietinha, deitada, o rabo abanando de vez em quando, dócil mas com ares de nobreza, embora fosse mestiça de vira-lata e pastor alemão, branca e castanha.
À mesa colocávamos as conversas em dia.
À tarde os estudos em casa se misturavam dentro do mesmo espaço, todo mundo palpitando até no que desconhecia.
Tempo bom!
Morei na casa 1159 por 26 anos. A rua mudou de nome três vezes.
Meus pais continuaram nela até 2007, quando se mudaram para um apartamento. Não parecem sentir saudades dela.
Eu, no entanto, nela vivi minha adolescência inteira, seguindo-se o tempo da faculdade e boa parte da minha vida adulta. Paredes que guardaram tantas frases, tantos momentos importantes de todos nós, pessoas que já faleceram, festas em família... A casa da saudade.
Passei o dia muito nostálgica e calada, os olhos visitando cenas, debruçando-me de quando em vez na janela do apartamento, buscando algum traço do passado, algum cheiro, alguma campainha de bicicleta, alguma família sentada à calçada, um jogo de vôlei nas ruas quase sem movimento, os passos até as hortas de italianos e portugueses para comprar alface, talvez enxergar ao longe um afiador ambulante de facas e tesouras, um colchoeiro de origem cigana que batia de porta em porta oferecendo reparos para colchões de crina... O coração aquecido e ao mesmo tempo vazio...
A solidão maior, a que maltrata, é não ter com quem compartilhar tantas recordações... Pessoas há que não estavam lá ou delas não mais se lembram, outras que não querem se lembrar.
Cotidiana nostalgia, como um aperto constante essa sensação amalgamada de alegria e tristeza, véus que caem quando me ausento dos novos dias e posso viajar pelas lembranças outra vez.
É mais uma vez a hora da Re-saudades!
Imagem: Google
Texto escrito em 30/08/2008, dia em que completei 300 mil leituras no Recanto das Letras.
Agradeço aos amigos que sempre me prestigiam.