Sem Eira nem Beira
As palavras as vezes, me fogem, bem mais do que eu mesma quando viro gato e desapareço, mas enquanto você dorme eu reviro as latas de lixo de madrugada para encontrar na minha pobre expressão um cheiro de flor hiper super tropical para que, pela manhã, você possa acordar com ela na sua cabeceira. E´ só que por vezes não a encontro...é tanta fuligem, lixo, cola, graxa, óleo diesel, gasolina, pedaço de pau cortante entrando na minha narina. Sina de gato não é brincadeira - pontapé, macumba, pra tudo eu sirvo, até companheiro morto já farejei nas caçambas e nada de alimento, o que dirá pra alma. Tem dias que só rola plástico e papelão, resina, caco de vidro, mas coração de gato não desiste da própria manha, garboso e vivo como tudo que sabe viver sem esmorecer, ainda que alguns queiram a minha pele pra tamborim ou fumegando num churrasco e os faróis dos carros ainda me turvam a visão só pra aporrinhar minha amplidão, meu faro de caçadora notívaga de - versos - então, perdão, se as vezes a palavra me foge como um rato esperto entrando no bueiro e no silêncio da noite, já meio triste, contemplo a lua na sarjeta com fome de poesia. O estômago ronca pedindo um verso que faça valer essa vida bandida e eu, já cansada, lambo minhas patas doídas. Sem eira nem beira, só me resta dormir na soleira da tua porta. Por ali me aninho junto ao jornal porque sei que quando você acorda, tua mão macia me pega, ternamente me acaricia e me põe um pires de leite fresquinho ! Depois, todas as farpas fincadas na minha pele, você as tira, uma a uma, cuidadosamente, e ainda passa metiolate e sopra. No teu carinho sou rara Angorá, siamesa na alma e vai ver, é só por isso que renasço pra mais uma vida, só pra você curar de novo minha ferida então, pela porta entreaberta, escapo de novo. Tento achar um telhado quentinho pra me deitar, espreguiçar ao sol, mas você bem sabe, eu sempre volto. Até porque, os outros gatos são sempre pardos e com você eu tenho sempre sete vidas, todas elas bem vividas.