carta 3
A caminhada de ontem foi agradável, voltei mais desanuviada. As noites aqui em cima costumam ser cálidas.
Pingavam estrelas no céu como gotas de cristal num lago longe. Azul abismal. Procurei, mas nem sempre a gente acha a Lua.
Nuvens, nuvens e nuvens...esparsas e vivas. Fiquei brincando de inventar coisas, alegrias, sorrisos... cada nuvem um brinquedo, só para enganar meu asco da realidade, do chão lodoso em que piso, afundo, aproveitar esse momento infantil de ser humano.
Ah, tinha de um tudo, cachorro correndo com orelhas esvoaçantes, lagarta e seus anéis interpostos (será depois virarão asas? vibrarão vôos?), cavalos alados... fazia tempo não brincava assim, de inventar memórias tão alegres.
As nuvens eram uns rosados pungentes, manchas vivas sobre um céu violáceo daqueles... dos de dentro. Depois as nuvens se emendaram uma nas outras, formando uma grande chaga de cinza ou seria uma colcha macia para meu sonho de viver. Mormaço contido de chuva. Chuva. Chumbo. Chaga. Chama.
E depois, a se refazer sempre.
Se tinha flores? tinha sim!
As que você me trouxe voejadas de borboletas, roçavam minha face de romã seca, sedenta, assustada de tempo. Vieram as pétalas e as borboletas colorir-me os instantes. Não cacei as borboletas, brinquei com elas, brinquei de ser girassol, de ser perfume tecido no silêncio, de ser o tempo da folha que cai, de ser a palavra muda na boca, de ser margarida, de ser lagarta, de ser pólen, de ser cor, de ser pétala, de ser asa, de ser vôo, de ser ar... de ser areia.
Estamos em tempos que raramente encontramos borboletas, se tenho a ver com borboletas, sou assim cabeça de vento que viaja no ventre da flor e com vôo todo errático!