retrógrado
abro os olhos.
ainda chove em Saturno
ouço a chuva cair e os pingos chapiscar na janela
sob o luar os amantes caminham de mãos entrelaçadas
enquanto o filho engatinha pelas encostas das montanhas nubladas
escrevo este poema.
os pensamentos nuviantes absortos em qualquer coisa
que não seja o barulho das tempestades que povoam a alma
ainda não escutei Mozart
nem enviei a carta ao presidente
aquele velho poema ficou preso na gaveta
e as telas da Monalisa ainda estão inacabadas
será que já são seis da manhã?
no Sambão do Povo a penúltima escola deve ter entrado
com a mesma euforia do fim de uma noite de amor
o carro alegórico bateu na avenida
do quarto andar um casal desce escancarando os dentes e gritando:
“viva a revolução!!!”
o entregador do iFood toca o interfone do apartamento do lado
e as senhoras rezam copiosamente o terço no velório do senador
queria fazer amor ao amanhecer
mas a cama está vazia
e o Tinder transportado ao estágio probatório
morrendo de cirrose fumo mais um cigarro derby
tomo um gole de whisky barato e me levanto para escrever poesia inútil
ainda nem escovei os dentes e o carteiro está gritando na esquina
o cachorro lambe minha cara amassada
estilhaços de vidro espalhados pela sala recordam o porre da noite anterior:
três garrafas de whisky, quatro maços de cigarro, sete garrafas de vodka,
cocaína e uma vida em desatino.
será que mercúrio ainda está retrógrado?