A MARTELADA ou UM POEMA PARA EXISTÊNCIA

Eu ouço o vazio do tempo em sua fornalha,

o tic tac maciço, o bater da martelada,

cada coisa que existe sob a bigorna

do átomo ao homem que se enforca,

nascendo, crescendo, morrendo

no hábito do dono da forja.

Assim foi que ele deu nome e forma

a tudo que habita sua oficina.

Ele aquece o forno e estamos nós

com nosso prazo e valentia

a cruzar, com o moer dos dias,

a cinza dos milhões de sóis

que jazem já forjados e acabados.

O projeto humano desde o barro,

mais um projeto no insondável trabalho

de não ficar só, de cumprir seu horário,

bater o ponto e tomar uma cerveja

sabe-se lá em que taberna ou igreja.

A ele os séculos na forja não dizem

mais do que dizem o cão cósmico

que pula e lambe seus sapatos.

Ele está abatido das incontáveis cabeças

que já martelou, das insondáveis almas

que viu chamarem-no do inferno.

Riu das histórias de sua própria invenção

e dos que não se acercavam da situação,

as vezes até conversou com a matéria:

diz-me quem sou? Diz-me quem és?!

“Tu és elemento, massa, substância

que regularmente me enviam da central,

eu sou a Martelada;

Tu és o pó do pó que surge da brasa

eu sou a Martelada;

Tu és o junco do bote do coveiro

eu sou a Martelada;

Tu és a cinza do cigarro no cinzeiro

eu sou a Martelada;

Tu és um rabisco no relatório de Janeiro

eu sou a Martelada;

Tu és a mancha no convés do baleeiro

eu sou a Martelada;

Tu és o marfim no chá dos estrangeiros

eu sou a Martelada;

Tu és o capacho no banheiro do cruzeiro

eu sou a Martelada;

Tu entendes? Podes viver tua vida de sonhos

e por nos bancos os ganhos de tuas vitórias,

podes contar tuas glórias

e pendurar junto de outras autoridades

teu retrato de pai do ano

ou presidente da república.

No final, estarás aqui com todo mundo,

depois que eu processar a etiqueta,

o lote e destinatário,

não terás jeito: é Martelada.

Podes desgraçar-te do início ao fim da existência,

ser um réles e vil miserável, ejeitado,

bêbado que alterna entre a sarjeta e o copo

sem saber quando é noite ou dia.

Podes ser desempregado, massa de manobra, gado,

declarar voto na esquerda ou na direita,

podes ser sequelado e votar no bolsonaro,

vai na tua fé falsa, na tua falta de fé.

Quando estiverem na minha fornalha

ergo o martelo e não tem jeito: Martelada.

Não interessa a mim o que fazem no entremeio,

se se matam, se roubam, se odeiam.

não é mais diferente que átomos

trocando prótons, elétrons, nêutrons,

transformando sal em veneno.

Eu limpo o suor da minha testa

com um pano já surrado,

assoo o nariz, guardo o lenço

no bolso da calça

e volto ao meu trabalho.

Os prantos que me cercam de pedidos

não são mais diferentes que vapores

que silvam ao meu redor

advindos da pressão nuclear

que liberta líquidos dos poros.

Eu respiro fundo sem pensar

e Martelada.

O que quer que signifique

o enorme desejo de ser...

Eu olho, cuspo e rosno.

Seja lá o que queira dizer jornada

eu ergo as mãos ao alto

e sento a Martelada.

Se pararem por um instante as buzinas

poderão ouvir o som,

agudo e prolongado,

da coisa sendo feita,

como eu reparo,

noutras oficinas,

o que é feito depois de vós.

Não penso que aja alguma coisa pra se entender

pra quem se ferra ou bate,

acaso perco meu tempo em estúpidos debates

e onde veio meu martelo

ou quem comanda minha forja?

Pra onde vou não é mais importante

do que onde eu estou ou onde estava,

todas as coisas indiferentes se alcançam assim

nesse desperdício de eloquência.

Eu sou o martelo em suas cabeças

e vos bato e vos moldo de acordo

com orientações provenientes

de instâncias maiores,

parte de um organismo

que não cabe aos empregados supor,

assim como golpeia meu martelo,

também outro martelo me bate

e também na cabeça de quem me bate

outro martelo,

pode não ser síncrono,

mas é Martelada

e não preciso saber nada além disso.”

Ele ouve o apito

e abre uma carta de sua amada,

põe os óculos e observa

as palavras flutuando

presas num vazio branco

pelo fio invisível da coerência.

É engraçado,

primeiro as palavras eram claras.

Na medida em que relia

e o tempo passava,

aquelas palavras, ali, na sua vista,

se distanciavam,

quanto mais envelheciam

mais se espalhavam.

Primeiro o alfabeto

rompeu com os fones,

depois os fones com os fonemas,

cada peça pro seu lado.

Ele apertava os olhos e voltava:

tudo ressignificava;

já não era o que foi dito,

era a essência da palavra,

o esquecimento,

o efeito do tempo no que se produz.

Se esquecer é se lembrar do que se foi,

é um passo mais próximo do que será.

Ele já não lembrava o que dizia a carta

- Oh! É algo terrível –

e também não havia importância,

seus humanos esperam

serem manufaturados.

Acabou a hora do intervalo.

Eu acordo do meu sono apavorado

é Martelada!

Diego Duarte
Enviado por Diego Duarte em 28/09/2020
Código do texto: T7074727
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