Vinde a mim

Relâmpagos rachavam as antenas modernas

enquanto triscavam, lépidos,

o homem debruçado sobre a mesa.

Parecia dormir.

Na verdade o homem sonhava.

Penetrava no tempo distante e judaico.

Os relâmpagos rachavam o tempo distante e judaico.

Projetava-se na cena o tempo distante e judaico

em que seguia Jesus pelas pradarias de Jerusalém

ao som de “Jesus: alegria dos homens”.

O homem alegre ouvia Jesus

e Jesus dizia-lhe palavras das mais belas e reconfortadoras,

jamais empregadas na prática (alguém ouviu falar em Marx?).

Jesus era belo, rude atrás da barba hirsuta.

Jesus falava pelo relâmpago e pelo vindouro vermelho.

O homem atento na imagem da cabeça sobre a mesa.

Vestia andrajos confortáveis

e ainda não conhecia o livro das etiquetas

para se portar nos cultos (uma mulher foi no TV explicar

as boas maneiras para se apresentar ao Filho do Homem).

O homem fedia o odor de dois mil anos.

O hálito que expandia de sua língua era acre mesmo,

como o dos bêbados repletos de amanhecer custoso.

Jesus não se importava.

Jesus era pobre como o Francisco.

Jesus era meigo como o orvalho.

Jesus ri das etiquetas.

Vinde a mim o fedorento!

Vinde a mim o piolhento!

Vinde a mim o pulguento!

E principalmente Lázaro, vinde a mim!

O homem sentiu-se aliviado,

pois Jesus era realmente compreensão

em Seu poder absoluto e eterno.

Jesus pôs a mão divina

sobre a cabeça do homem

e um último relâmpago

espargiu-se de Seu prenúncio...

Não, não!

Era o despertador do celular que berrara

e uma baba pingou da boca do homem

direto ao desespero da vigília.