Primeva Metafísica (Linguagem do imperceptível)
Imprecações, letargias,
decepções, alergias,
imprecisões, alegorias.
E Deus dispõe
à sua frente
o aleijão,
o cego,
o abjeto,
o paupérrimo,
a menina cândida e muda
que o câncer cinzela a alma,
o homem abandonado,
o insulto alegre dos beberrões.
O bolero de Ravel no rádio
soa como antídoto
sobre a mesa de compensado branco.
A música,
triste e repetitivo escarninho das horas.
No varal, roupas velhas secam ameaçadas.
O sol: novo espião desajeitado,
entrando pelo quarto como alvíssara surda.
Seu inimigo festeja sua dor
no banquete dos idiotas.
Quando a saudade é bola consumidora
de entranhas,
deseja que o corpo cale sobre a cama
metafísicas vítreas e toque.
Soníferos durante dias.
O mês vai acabar: pétalas sobre a calçada.
O grito incrustado no ar,
tempo do Senhor!
O violino e o piano
desfilam pela aleia do cérebro e do mau gosto
como dois intrusos
na posse do silêncio.
A vida parou um milésimo de segundo
no gemido
da mãe moribunda.
Deus instalou sua bancada
para o sorteio dos destinos:
um homem vai amar a lama,
uma mulher vai domesticar instintos,
a criança vai descobrir o sentido ainda cedo,
no precoce instante de não querer saber.
O outro sentirá todo o entorpecer do verão,
toda a rigidez do inverno.
Nunca primavera,
nunca primavera,
nunca primavera.