Sangue em teu Espelho
Eu, o aborto expelido na cópula entre a Luz e as Trevas,
Filho unigênito de todas as loucuras e crimes,
Batizado no rio da Maldição onde boiam
Todos os cadáveres de todos os deuses e esperanças.
Eu, a ovelha bastarda concebida por um pai sádico sem origem genealógica,
Cuja alma se acasala nas entranhas redentoras da Indiferença,
Enquanto réquiens agonizavam nas sombras estripadas pelo Esquecimento.
Eu, a profecia sempiterna e umbrífera que engodam os lábios e as mentes
De todos os sábios, profetas, videntes, governantes, estados em coma...
Eu, a mulher traída e descartada por todos os maridos que me juraram
Amor, lealdade, dedicação e compromisso;
Eu, os goles de bebida que querem te fazer esquecer quem nunca serás;
Eu, o abismo que de tão exaurido de minha existência abismal e absurda,
Sempre hesita em pular perpetuamente na Noite inacordável da Morte,
Sempre adiando para o amanhã este vazio infinito e burlesco
De se viver os hábitos habitualizados pela colônia
De formigas operárias entediadas e tão insubstituíveis!
Eu, o sol de tuas esperanças, desejos, projetos, forças, e sonhos,
Que te iludem a cada amanhecer nas auroras túrbidas e pusilânimes de tua alma.
Eu: a palavra do teu íntimo onde guardas tudo o que renegas
Verbalmente para ti próprio, e para teus amigos;
Eu, a inacessível idiopatia do Universo, e da Vida
Que infectam com um mal-estar voraz teu estômago, teus desejos, tuas ideias;
Eu, a o alter ego sempre mascarado que tu inventas para que possam te aceitar e te amar.
Eu, o enigma que engole todas as afirmações e elucidações;
Eu, as explicações e respostas que não adormecem tuas dúvidas e inquietações;
Eu, que cheiro a devassidão messiânica nos oráculos de minhas incertezas;
Eu, que brado as angústias dos corações suicidas dos amantes da paixão e da dor;
Eu, que sou sempre outro ao abraçar meu “eu” embaçado e desconexo;
Mais lá nos cemitérios onde a vida brota sinestesias neológicas em meu sentir,
E os espíritos preferem conviver com os vermes nas sepulturas da decomposição
A querer voltar a andar e jogar xadrez com os cidadãos nas ruas;
Lá, onde a Liberdade é uma pedra amarrada ao pescoço perante o Abismo
Que o Destino nos dedica como dádiva inescapável;
Lá, que nunca é lugar nenhum,
Lá eu cortei a garganta do céu com a minha incredulidade de dois gumes;
Onde amordacei os olhos cheios de culpa da fé,
Onde aleijei a inércia de todos os dinamismos do querer psicofisiológico,
E levei o cadáver da Luz primogênita perante o trono sensitivo de tua Escuridão.
Eu, o facebook de tuas conexões humanas tão desumanizantes e desconexantes;
Eu, a moda bela e suntuosa que te faz comprar todo o meu ouro de tolo;
Eu, o amigo que te venderá por trinta moedas de prata, ou por uma mulher, não importa;
Eu, o qual sou tu, e que nunca estás satisfeito com tudo e nem com nada.
Vinde meus irmãos para o penhasco de nossa Decadência Pós-Modernista:
Nós, os amantes da Ciência e da tecnologia e dos prazeres sexuais e sensoriais,
Olhai cada um essa imagem nas águas cristalinas e orgânicas criadas por vossas lágrimas:
_ Quem (ou o quê) tu vês diante do todo e de tudo perante o teu reflexo?
Gilliard Alves