Canção do ocaso
Dói ver a ave que desliza,
num vôo íngreme, para sobreviver
com asa quebrada,
quando passou toda uma vida
servindo com dedicação.
Trabalhou toda uma vida,
da infância à juventude,
da juventude à velhice,
mas sente que agora
seus vôos são rasteiros,
suas asas se tornaram fracas,
sua penugem cai aos poucos
e ela sente solidão e dor.
A dor física a consome, aos poucos,
mas ela ainda reage,
porém a dor íntima no seu eu
a fere muito mais,
e ela medita:
é difícil aceitar que, mesmo capenga,
ainda luta,ajudando os companheiros,
podendo ou não, aguentando ou não...
mas como retorno
só é considerado o seu trabalho...
se conseguir trabalhar...
Porém se seus olhos já cansados
demonstram sua dor, seus ais,
quem se importa?
Sua dor é considerada apenas um melodrama.
É como se dissessem:
-Ao trabalho, você ainda está viva,
é preciso trabalhar!
Se, com a penugem rala,
o frio a consome,
difícil compreenderem
e jogarem um agasalho
sobre seu corpo fraco e envelhecido.
Se,quando os seus pedidos não são mudos,
levada pela dor,
só sente indiferença,
só ouve reclamações
ou não ouve nenhum som
que possa acalentá-la,
para amenizar sua dor,
minimizar seu sofrimento.
Para quê? Ela deve se conscientizar
de que é uma máquina de trabalho
e que deve sufocar seus sentimentos,
se é que acham que ela os têm.
De quem ela sempre serviu,
alimentou, acalentou,
suavizou os sofrimentos
com amor e dedicação,
recebeu pouca atenção:
não têm tempo, a vida está difícil...
mas externam seus queixumes,
ela os ouve
e tenta ajudá-los, mesmo capengando.
Dentre eles, alguém, uns poucos,
ainda perguntam:
-E sua asa quebrada, como está?
Estes são aqueles que menos receberam dela
mas que encontram um tempo,
por menor que seja,
para lançar-lhe um olhar,
dedicar-lhe uma palavra de carinho,
enxergar o sofrimento
da ave triste e cansada,
reconhecer o quanto ela bateu as asas
ao longo de sua trajetória
para sobreviver
e ajudar seus companheiros...
Aqueles ainda percebem que ela,
mesmo trôpega,
se dedica a ajudar os que adoecem,
que passam dificuldades,
por isso ou por aquilo...
Àqueles, ela dirige,
através do seu olhar triste,
raios de gratidão.
Sabe que a eles pouco serviu,
pois que voavam em outros céus
e que, só ultimamente,
em revoadas,
vieram a encontrá-la.
E ela os distingue
pois têm mais sensibilidade
e percebem a dor que dói nela.
A esses, ela pede,
quando chegar seu último estertor,
que aqueçam seus pés frios,
que besuntem, com o óleo do amor
e da caridade,
sua asa quebrada,
mesmo que ela saiba que nunca foi santa,
que, certamente, muito errou,
mas que sempre se esforçou no que pôde,
para servir...
A estes ela, com certeza,
terá coragem de pedir, mudamente,
que coloquem seus despojos
numa vala profunda
e a cubra ao menos com uma rosa,
para perfumar seu sofrimento.
E, antes dos instantes finais,
ela olhará as nuvens pela última vez,
agradecendo a Quem a criou
e permitiu que ela, um dia,
sobrevoasse o céu
e vislumbrasse os lugares
onde pôde colher alimentos e água
para depositar no bico dos seus filhotes,
ajudando um companheiro
a alimentá-los,
até que eles criagem penugem
para voar com suas próprias asas.
Então, poderá fechar os olhos para sempre,
e, quem sabe, ainda voar em outras galáxias...