Aurora Entardecida
Os gritos de meus sonhos suplicando por ajuda enquanto se afogam no oceano,
E meu corpo ancorado nas profundezas do medo e da dúvida,
A fumaça dos cigarros como uma neblina efisêmica com ar de sofisticação,
E o cheiro escurecido de uma nova manhã automatizada.
Mas fora dos raros minutos como esses
Em que bruscamente sentimos a entidade original estremecer
No seio de sílabas hoje mortas,
Quando os nomes já perderam toda beleza de colorir as coisas,
Como um pião prismático que gira depressa e se nos afigura acinzentado,
E refletimos sobre as mãos do devaneio para voltar ao passado,
Para aqueles anos da nossa primeira infância tão sagrada, contudo maculada,
Que já não estão mais em mim,
Como um ser que vive por si mesmo,
Intocável, imutável, intransponível, porém tão real,
Ou ainda mais real do que os acordes que gotejam dos objetos
Invadindo a audição do presente ainda tão abstrato.
Mesmo aqueles véus pareciam matéria viva,
E que pareciam ter sido fiados pelo sofrimento cético,
No interior frágil e friorento do casulo
onde se misturavam vozes, atitudes, gritos, idéias, versos;
e tudo se adjetivava em ondas pluricelulares que se tornaram translúcidas,
retraindo o raio de sensações prisioneiras que percorrem pelo corpo,
tornando mais preciosa a matéria embebida da flama em que estava infundido.
O que talvez se ame era o ser invisível que se punha em movimento a nossa imaginação,
Cuja aproximação nos aturde,
Cuja vida nós desejamos captar
em toda sua complexidade subjetiva.
O ser machucado e ferido
Sai menos sofrido e vilipendiado do que quem o machucou.
E às vezes chega-se a pensar que não é o mundo físico
o único diferente do aspecto sob o qual o vemos,
que toda realidade talvez seja tão dessemelhante da que julgamos perceber e definir;
que as árvores, o sol, o céu, tudo não seria tais como os vemos,
se fossem conhecidas por criaturas que tivessem olhos de constituição diferente dos nossos,
ou que então possuíssem para isso outro órgãos, que não os olhos, é que dariam
a verdade tão velada das coisas que julgamos conhecer.
E vi na superfície do silêncio estendida sobre o meu sono,
Um choque tão avassalador,
Que chega a fazer-se ouvir como um suspiro
Sem nenhuma ligação com nenhum outro som já ouvido,
Tão misterioso, tão cativante,
E o pedido de alguma explicação que esse som nos exala
É o suficiente para nos acordar de nossa apatia e egoísmo.
E toda a castidade do silêncio foi maculada,
E ouve pranto e gritos de lamentações por todas as legiões de anjos no Paraíso mítico.
Basta uma modificação em nossos hábitos
A fim podermos tornar nosso sono poético,
Se ao nos despirmos de nosso próprio eu,
Possamos senti-lo em toda sua extensão infinita em que pode se auto-desdobrar,
E nos levar para mundos inimagináveis e riquíssimos de conhecimento.
Mas remoemos pensamentos semelhantes aos que riam de olhos abertos,
E se recobra o ânimo despercebido de que o minuto precedente
Esteve prenhe de um novo raciocínio em contradição formal,
Com as leis dúbias da lógica e a evidência do presente com seu chicote;
Essa breve ausência significa que está aberta a porta pela qual
Poderão talvez escapar-se imediatamente da percepção do real.
Não se é mais ninguém.
Não se é mais o mesmo.
Como então procurar o nosso pensamento
A nossa personalidade ofídica,
Como se procura um objeto perdido,
E acaba-se por encontrar tristemente o velho “eu” antes que outro qualquer?
Acusando a si mesmo,
Afundando-se em seu leito de auto-piedade em vão,
Violentando-se porque se é demasiadamente integra,
Franca e honesta nos seus sentimentos,
E o espelho zomba com gargalhadas sombrias de tua solidão tão ideológica.
E de repente,
diante do vácuo de mim mesmo,
Senti dentro de mim uma voz estranha que clamava de minhas profundezas
De onde não se sabe as origens,
Tateando em si mesmo para encontrar algo,
De um labirinto orgânico e cheio de terminações nervosas,
E senti como alicates a arrancar minhas unhas
A ansiedade e a tristeza que me haviam de me angustiar naquele horrendo dia.
Nessa galeria de figuras simbólicas que é a sociedade,
Computando os vícios e as cobardias de seres uniformizados,
Nesse ódio encapuzado de se manter relações com os outros,
Para satisfazer essas filosofias estadistas, sociais e religiosas.
O tédio de ser a si próprio,
O tédio de viver a mesma vida arquetipamente,
Contudo há um jardim ainda virgem e um cadafalso dentro de nossas almas,
Suplicando por romper a placenta de suas hibernações.
O Vento e o Tempo a umedecer tua existência tão estigmatizada,
Nesta tempestuosa aurora entardecida.
Acaraú, 29 de Maio de 2010