Colar de acontecimentos grudado nas fraldas do Tempo
Colar de acontecimentos grudado nas fraldas do Tempo
A imagem que vislumbro no espelho molhado da mente, me fala de coisas esquecidas
Sem ao menos perguntar se as quero, ou se as desejo, neste momento inoportuno, lembrar:
As fantasias da Criança guardadas no armário dos sonhos, loucas e esmaecidas,
A Realidade surgindo, gigante, a atormentar o Adolescente amedrontado, que dela desvia o andar.
O Adulto em mim embute esses dois, companheiros inseparáveis de velhas batalhas perdidas;
O Ancião que virá (Se não perder a viagem) com as memórias de nós três terá de lidar.
Este colar de acontecimentos grudado nas fraldas do Tempo, este lento escorrer de minha própria ampulheta,
É como sangue a gotejar de minhas veias abertas; é como alma penada a vagar por minhas noites insones, é Caipora na mata a espreita.
(...)
O velho campinho de terra no meio da rua, o jogo de bola de meia na grama da praça, o cheiro de couro curtindo impregnado no ar;
Dona Zefa cortando seus doces na mesa: marrom-glacê, goiabada; o meu pai na calçada prostrado, partilhando com as moscas bebedeiras recentes e antigas canções,
Tobias Barreto derretendo sob o sol escaldante, o rio Real se arrastando como cobra na areia, morrendo de sede, sem forças prá andar.
O lençol de flores a cobrir as cacimbas, o inconfundível sabor do pequeno araçá; os araticuns suculentos - o Campo Santo modorrento e suas terríficas visões.
Meu avô, tão amargo quanto a jurubeba do vinho; minha avó, jenipapo, seja em suco ou licor; minha mãe impalpável como as pinguelas da estrada – me legou os abismos que carrego no olhar.
A fazenda Pau Preto, minha prima Maria; outras curvas do rio, jabuticabeiras nas douradas manhãs; picadas de abelhas a cobrar por seu mel, melodia de carro de boi – carreiros a brandir seus ferrões.
Impossível olvidar de minha Terra Vermelha, da Catinga de Cima que a de baixo não tem, de minha prima Lourdes, (de todos meus primos, Manoelito era o meu preferido) de seu olhar protetor;
Das cantigas de roda nas calçadas de noite, da passagem do anel pelas mãos das meninas de cabelos de ouro e dos olhos de céu – impossível esquecer Bernadete: loirinha, franzina, rosto no rosto trocando juras de amor.
(...)
Veio o hiato, o desastre: Gongogi e a lama; (outros cantos, outras falas) a estranheza de hábitos de gente estrangeira - de terra chuvosa, do verde cacau,
Dos mergulhos no rio, das aventuras nas matas, dos jumentos soltos nas ruas e do perder da inocência tardia; seu Clarindo, Barbosa e a poesia - os tamancos de seu Jofre e os bailes no clube.
Ainda hoje me invade o caruru as narinas, o degustar de acarajé com pimenta, a jaca tão tenra, o som do saxofone de Jerônimo nas madrugadas, a luz vermelha e Belice, as brigas de rua e o pitu sem igual.
Gongogi é redoma, seu rio é meu ninho, um amparo de alma - suas ruas de pedras refrigeram minha angústia: são balizas - direcionam meu Norte; são pincéis coloridos a pintar meu sonhar, que de mim apagar nunca pude.
A fanfarra do Grupo, a vontade de tocar; Viluca na caixa, os cambitos girando nas mãos; Rollings Stones e Beatles, canções em inglês: gibis escondidos, serenatas ao luar - a consciência serena, sem qualquer referencia de Bem ou de Mal.
(...)
Itabuna, Olavo, minha mãe rediviva. O Gurupá, a Coréia; Marlene, Pagode, o cavaquinho de Péricles, as brigas de faca no cabaré das meninas - a sanfona a chorar encobrindo os desmandos daquela gente tão rude.
Tio Moisés, a farinha em litros na feira; tia da Glória no porta-retratos a guardar os traços da juventude, mais um enfeite colocado na sala. Cida, Cili, Eri, meu irmão, Paulinho, o caçula que veio depois e ocupou todo o espaço.
Ilhéus, os bordados na mala, as fazendas tão ricas, os fazendeiros tão senhores de si; os tó-tó-tós nos levando ao Pontal; Banco da Vitória e as canções dos Incríveis – o beijo de Célia dançando sem sair do compasso.
(...)
Cidade dos Sonhos, noite de uma Quinta-Feira com ares de Primavera de Agosto de 2010
João Bosco