A Encruzilhada II (ou Os Perigos da Vida)

“Je sais que la douleur est la noblesse unique

Où ne mordront jamais la terre et les enfers,

Et qu'il faut pour tresser ma courrone mystique

Imposer tous les temps et tous les univers.”(1)

Baudelaire

Estava eu seguindo o Caminho por mim escolhido,

Após vencer a bruta dúvida que me consumia

Acerca de qual destino seguir eu deveria.

Boa parte do Caminho eu já havia percorrido

E sobre seus obstáculos obtido vitória.

E assim eu continuava em busca da suprema glória.

Eis que de repente, numa das curvas da estrada,

Avistei de longe a figura de um senhor idoso.

Ele caminhava devagar e tinha um aspecto misterioso:

Trazia na mão um cajado e sua roupa era toda rasgada

Aproximei-me dele e o reconheci, era Ahasverus, o judeu errante.

Ele olhou para mim e disse de forma emocionante:

“Aonde pensas que vai meu caro jovem?

Tu não sabes que passa a glória desse mundo?

E que a nossa felicidade tem o ventre infecundo?

Na vida é preciso que muitos ainda chorem

Para que, mesmo assim, haja muito mais por chorar.

Há muito que precisas aprender. Escute o que vou lhe contar:

“Eu sou Ahasverus, o mais infeliz de todos os judeus,

Que um dia rejeitou a Jesus Cristo, nosso Senhor,

Aquele que em vida e morte só nos deu amor

Por meu gesto infame, fui castigado por Deus:

Estou condenado pelos séculos e séculos a vagar

Até que o dia do Juízo Final enfim chegar.

“Ao longo de todo esse tempo de castigo,

Muita coisa vi e aprendi pelo mundo afora.

Andei por caminhos como esse em que andas agora

E nenhum deles foi gentil para comigo.

Por muito conhecer o mundo, agora te ensino,

Pois, apesar de homem, é como se tu ainda fosses menino.

“Está escrito: ‘enganosa é a beleza e vã é a formosura’ (2)

Sei que as coisas do mundo têm grande fascínio,

Bem como o mesmo poder para criação quanto para o extermínio

E por serem sedutoras, não vemos oculta a sua amargura.

Em verdade vos digo que muita atenção é preciso

Para que possamos ver a maldade por trás de um sorriso.

“Não te intimides com a rudeza do maninho.

Antes procures evitar a raposa ardilosa,

Pois esta se veste em pele de ovelha bondosa.

Temas menos o touro bravio do que o simpático golfinho.

Menos mal te fará um mal anunciado

Do que um mal, sob enganos, camuflado.

“Acautela-te menos das víboras

Que de todas as deusas enganadoras

Pois estas têm ocultas forças esmagadoras:

Externamente são encantadoras; internamente frívolas.

Enquanto sonhares ter com elas um espasmo dourado,

Tu serás surpreendido e cairás morto, apunhalado.

“Agora vai-te! Siga teu caminho, cumpra tua sina.

Se o fardo da vida te fizer o ombro doer,

Não desanimes, pois estás começando a aprender.

É na Dor e no Infortúnio que a vida nos ensina.

E cuidado! Para cada alma a vida acha um modo de seduzir.

Sejas forte agora. Adeus, meu caminho vou prosseguir.

E o velho Ahasverus seguiu em seu passo lento...

Depois de tudo aquilo que ele me tinha dito,

Eu dei-me conta do meu pesar e caí contrito.

Eu estava preste a sucumbir ante a um mal intento

Que alguém preparara para me tragar

E de susto parei à beira do caminho para descansar.

Então eu vi descer uma nuvem do Céu.

Ela era um nimbo(3) ornado com áureos arranjos

E em cima dela havia três grandes anjos:

Dois estavam atrás, e na frente vinha o anjo Gabriel.

Um deles tinha nas mãos uma taça contendo Alegria

E o outro uma grande jarra de Tristeza consigo trazia.

A nuvem celeste pairou flutuando à meia altura,

E, conforme mais próxima de mim, percebi

Nas auras de cada anjo um brilho que nunca vi

Na terra ou no ar, e que iluminava a estrada escura.

O anjo Gabriel voltou-se para mim, imponente,

E abrindo suas asas falou-me com sua voz potente:

“O que testificou aquele velho não deve ficar oculto nas sombras,

E a palavra divina, também em testemunho, deve ser ouvida por todos.

Pois está escrito: ‘eis que vos envio como ovelhas ao meio dos lobos;

Portanto, sede prudentes como as serpentes e simples como as pombas’ (4).

É preciso que se cumpra o que está nas Sagradas Escrituras.

Bendito seja Deus e todas as suas criaturas”.

Depois de tudo quanto me foi revelado,

Depois de ter aprendido acerca da Prudência

E de ter reveladas as causas de minha penitência,

Fiquei indissociavelmente deprimido e maravilhado.

Então a nuvem rompeu os ares com uma grande explosão

E, ao subir, os anjos derramaram seus recipientes no chão.

***

(1) "Eu sei que a dor é a única nobreza

A qual a terra e os infernos jamais corroerão

E que é necessária para tecer minha coroa mística

Para impor todos os tempos e todos os universos.”

(2) Provérbios XXI, 30

(3) Nuvem cinzenta e densa que facilmente se precipita em chuva.

(4) Mateus X, 16

Kalil Santos
Enviado por Kalil Santos em 29/06/2009
Código do texto: T1673922
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