Alheia
o que te falta, indaga minha mãe?
o nosso amor não te basta?
você tem pai, mãe, uma família,
uma irmã que vale ouro
você tem um quarto só para si
uma cama quentinha
você tem saúde, o que tanto te falta?
eu responderia dando de ombros
que me falta amor
mas esse tipo de amor que me falta
eu não posso sair de porta em porta
mendigar o que me falta
porque esse amor que me falta
só tem graça de verdade
se vier de livre e espontânea vontade
e esse amor é um alguém
é um alguém cujo nome preservo
que está longe do toque
mas já invadiu minh'alma
a ponto de não ter espaço
para nenhum outro amor
como esse amor me falta brotar
porque esse amor que me falta
é o amor que eu sonho
já tem tanto tempo
é esse beijo que não experimentei
é esse abraço quente que nunca ganhei
é esse querer bem que move
que dispensam desculpas
porque as desculpas são as muletas
daqueles covardes indecisos
que não sabem perder e não querem ter
os que desejam manter tudo como está
e esse amor que me falta
é construído com coragem
porque para vivê-lo não basta desejo
esse que arde às vezes
arde no peito por ser forte
arde na pele carente de toque
não há nada que possa ser feito
e eu me tranco no casulo
às vezes eu planejo cartas
e não escrevo nenhuma
já nem mais me reconheço
escrever sobre solidão me representa
escrever sobre o que melhor vivo
porque vai além de estar só
estou cercada de pessoas
e nenhuma delas me preenche
e eu também sinto que não existo
dentro do coração delas
ou talvez eu esteja apenas magoada
o isolamento se fortaleceu
se não quero ser perturbada
também me atormenta a ideia
de que não tenho amigos verdadeiros
nem esse amor que me faz falta
vai além de um Whatsapp
cujos contatos são decorativos
de nunca ter mensagens especiais
de "bom dia", "boa noite",
alguém querendo saber como foi meu dia,
alguém que me manda áudios fofos
e compartilha tudo comigo por querer
alguém que gosta da minha cara de sono
e não se importa de me ver chorar
ou até chorar de tanto rir
alguém que não se importe
se eu repito frases do Chaves no dia-a-dia
alguém que ainda goste de rock
alguém que diga "até mais" e volte
é a dor de querer com força
quem distante de mim está
é ver aquela felicidade tóxica
e me perguntar: por que não eu?
é sentir uma tristeza sem tamanho
que não cabe em verso
que me roubou a vontade de escrever
porque descobri não ter vocação
não sou queridinha de editora
não ganho recebidinhos do mês
não sou a autora preferida de ninguém
gera culpa não me alegrar
porque eu deveria da plateia
sempre vibrar o sucesso das outras
o fato é que eu queria estar no palco
e não tem lugar para todo mundo
e eu não sei ser hipócrita
se eu fosse, talvez me poupasse
de tantos arranhões na alma
se eu dissimulasse mais
e fosse menos eu, menos sincera,
se eu fosse mais "comercial"
e me expusesse à demasia
seja meu corpo ou a escrita
se eu pasteurizasse as tramas
propagando os clichês que odeio
e fosse uma eterna bajuladora
das abelhas-rainhas da plataforma
eu poderia ser uma falsiane
teria milhões de amigos
pensar apenas na capa bonita
focar menos na eternidade e mais no lucro
escrever aquilo que vende
e quem sabe me dariam migalhas
insatisfeita com migalhas
prefiro a inanição ao preço da dignidade
e de que adianta ser escritora
se não me coloca pão na mesa?
é só um rótulo estúpido
para que me tratem com algum respeito
na hora de fazer um cadastro
ou quando converso com desconhecidos
só para não me sentir tão por baixo
e eles devem se desiludir
quando descobrem que não sou famosa
que não tem uma fila gigante
esperando por um autógrafo meu
numa edição qualquer da Bienal
cuja reportagem apareceu no jornal
publicar livro virou algo banal
qualquer boçal consegue isso
qualquer boçal, menos eu,
é sempre bom recordar
que eu me sinto sempre excluída
se não tenho sorte no amor
foco na vida profissional
nada deu certo por lá também
tantos anos de escrita
para não ter nada a comemorar
uma década perdida
qual é meu maldito público?
quem são meus leitores?
são fantasmas, sim?
fantasmas que vivem noutra dimensão
porque em tempos de smartphone
eu não caio em desculpa esfarrapada
ninguém é tão ocupado
e chega de blá-blá-blá
que eu te vi relendo a degustação
daquele livro que foi publicado em 2015
te vi lá pagando pau para a patricinha
que está cagando para a sua existência
porque para ela você é só mais um like
por isso aquele compartilhamento dói
VOCÊ NÃO É IMPORTANTE!
ninguém decide se deprimir
o processo decorre gradualmente
a inspiração recuou devido a ataques
não ter um amigo para me defender
fez-me lembrar da insignificância
vi-os inventarem desculpas mil
e estarem sempre disponíveis
disponíveis sim, mas não para mim,
eu não gosto de entrar em livrarias,
não sigo editoras, tento evitar o Instagram,
não porque seja uma pessoa má
que quer ver todo mundo na pior
só porque eu desisti dos meus sonhos
a verdade não é essa
é porque meu coração está destruído
e se eu puder preservar
uma réstia de dignidade
estará de bom grado
para não piorar o que já vai mal
porque eu parei de rezar
para um Deus que me ignora
que faz pouco caso de mim
porque se amasse de verdade
teria me dado tudo que pedi
nunca teria me deixado sozinha
sozinha num mundo de feras
em que o ter determina o valor
que cada um tem onde vive
o ter e a extensão do ser
do "ser alguém" para o mundo
alguém que seja importante
que faça algo relevante
ser a namorada de alguém
do que não ser nada
se no mundo quem se dá bem
é quem usa as pessoas
algumas até fingem que amam
fingem tudo, até empatia,
fingem solidariedade que não têm
escrevem textos lindos
e não vivem nem um parágrafo
só imploram suas curtidas
para curtir a vida na piscina
que rendam bons stories no Instagram
vai além de estar triste
porque eu queria ser mais forte
não viver me culpando
porque aqueles que se diziam amigos
bajulam os autores famosinhos
queria ter nascido com outra vocação
algo que não dependesse de editoras
de curtidas nem de nada
que eu pudesse ser útil ao mundo
se eu tivesse dez anos a menos
e um bocado de destemor
escolheria estudar Meteorologia
pelo menos eu estaria numa área
onde meu trabalho seria relevante
e contribuiria para a sociedade
muito mais do que clichês adolescentes
e comédias românticas de finais previsíveis
eu estudaria os fenômenos climáticos
teria autoridade para falar sobre o que amo
sem me sentir inadequada
porque é assim que me sinto
quando comento sobre meteorologia
me sinto a vovozinha do ponto de ônibus
mas do que posso falar?
eu não tenho uma vida amorosa
se tem algo que eu não conheço
esse algo é o amor verdadeiro
esse amor que tanto me faz falta
não é que o amor da minha família não baste
eles não são eternos
e eu sei o que as pessoas pensam
de quem não tem ninguém
um homem solteiro é bem menos cobrado
uma mulher solteira é a encalhada
muita gente usa uma entonação jocosa
para se referir aos solteiros
e eu sei que em tempos de Covid
e tantas mazelas mais,
estar solteira não é o fim do mundo,
porque nem solteira eu estou,
eu estou sozinha,
porque quem está solteira
encontra-se disponível
e eu não estou disponível
talvez eu nunca tenha estado
talvez eu nunca venha a estar
porque eu não escolhi nascer
e nem sei de que forma vou morrer
então quero pelo menos
ter o direito de ficar com quem eu quero
e não por puro desespero
se não for para ser verdadeiro
dispenso quaisquer migalhas
não sou estepe emocional
para almas desprovidas de dignidade
não nasci para ser a outra
nem quero ser apenas decorativa
enquanto a princesa nórdica não vem
porque eu já sei o que é rejeição
eu já fui trocada por uma cor de olho
você não tem ideia do quanto isso machuca
eu não escolhi ter olhos pretos
queria que eles fossem bonitos
queria que dissessem que meus olhos são lindos
mas eu sei que eles não são
eu sei também que não sou bonita
entretanto, se eu sou preterida
porque a outra moça é mais evoluída,
altruísta, espiritualizada e empática,
preocupada genuinamente com o mundo,
tem uma conversa inteligente
e o conteúdo se harmoniza à forma,
reconheço minhas imperfeições,
mas dói lá no fundo da alma
ver uma pessoa que te perseguiu
só te tratou bem por puro interesse
logo te descartar por uma cor de olho
porque ele escolheu a outra pela cor do olho
não por virtudes morais que me faltavam
se eu tivesse olhos claros
talvez pudesse ser a gostosinha
que tem milhões de contatinhos
moral para dar vácuo
e ainda ter trouxa rastejando
meninas pedindo para ter os meus olhos
ninguém nunca pediu para ter meus olhos
já me disseram que os meus são tristes
as janelas da alma não dissimulam
não importa o tamanho do sorriso
tem um buraco imenso dentro do peito
uma angústia que não cede
eu sei que sinto falta de algo
e nunca consegui colocar em palavras
essa parte tão quista que me falta
se é que a tive ou é miragem
me chame de encalhada, orgulhosa,
me chame do que quiser,
vou ser a velhinha cercada de bichos
uma Dona Neves que sabe de cor
o nome de cada integrante da matilha
pelo menos meus cachorrinhos
nunca vão me trocar por uma novinha
nem por uma cor de olho
ou por alguém que é bem famosinha
todo amor do mundo basta
mas nem todo amor do mundo
é capaz de curar alguém
que já nem se reconhece mais.