Angústia
Você não sabe o que é angústia
nunca repartiu com as mãos a tragédia das tardes esganadas
uma sonata de Satie lenta sufocando a lembrança
você não sabe o que é angústia
nas horas mortas
nas zonas mortas
a respiração represada na inconstância
silêncio
sentencio o silêncio impossibilitado
desses limites
desses calmos e estragados limites
você não sabe o que é angustia
nunca repartiu com os vãos a comédia das noites embriagadas
não tem a pureza ensaiada do ritual dos afogados
não refez o contrato com o primeiro demônio ao cadafalso do arrebol arcaico
você não sabe o que é angústia do rosto que não será recolhido
no rol dos enfermos
máscara desoladora dos que escolhem se embotar
mutismo de cera
você não sabe o que é angústia
da noite sem frio
da noite sem fio
o rio que desliza desolador deserto
você não sabe o que é angústia da mesma cena do teatro encanecido
embaraço embaraço embaraço
ontem hoje amanheço
essa manha do tempo
desenrolar dos panos sobre as feridas abertas
esses charcos sem luz
essa imensidão de banalidades profundas que salpicam
a pele e pela esquentando ossos
liquefeitos olhos óleos sangue vertentes valentes quadros
angústia bendita da escolha original
da vida empacotada poeira de acúmulo
vitral das igrejas abandonadas no centro do verme que soma somos some
a sonata é profunda no repartir dos sons
assombros ainda são permitidos
as atitudes beatas de nojo e esperma das madrugadas inúteis
os dias inúteis e ondas de choque estampido e cérebros abjetos
você não sabe o que é angústia da felicidade ilusória
do gozo êxtase absurdo
surdos ganidos de sutileza e tosse
estáticas sobras restos de inspiração e medo
degredo de exílio imposto pelo mel das ações maculadas
da escolha do grilhão
você não sabe o que é angústia
você não sabe o que é angústia
definitivamente não sabe.