Medeia

Você costumava ser meu herói

Ainda me lembro do dia em que o conheci

Seu barco imponente ancorado na pequena ilha

Seu rosto determinado a vencer o desafio

Me apaixonei tão perdidamente

Que nunca entendi como

Até que você revelou

Que não passava do resultado de uma flecha do Cupido

Pagando favores políticos que devia

A uma deusa qualquer

Com você, eu teria ido a qualquer lugar

Por você, teria feito qualquer coisa

Abandonei todos aqueles que um dia me foram caros

Matei monstros e inocentes para mantê-lo a salvo

E tornei-me pior que os monstros que destruí

Para garantir que nada ficaria entre nós

Deixei meu deus e minha casa

E rumo ao desconhecido contigo parti

Perdida em seus braços quentes

Arrebatada por seus beijos intensos

Hipnotizada por suas palavras doces

Que por algum motivo estúpido me pareceram tão sinceras

A você, dei tudo o que eu era

A sua disposição, coloquei tudo o que sabia

Abri para você todas as portas

Inclusive a do meu coração

Que prometera jamais entregar a ninguém

Como uma criança inocente

Deixei que me levasse para sua terra

E me fizesse sua mulher

Em troca, pedi apenas que nunca me deixasse

E que nossa vida fosse uma eterna aventura

Não sei quando as coisas ficaram tão ruins

Talvez, estivessem sempre lá

As manchas negras que eu nunca quis ver

Conhecedora de toda a arte da magia

Porém ingênua nas artes do coração

Poderia ter aguentado qualquer outra coisa

Mas nunca esperei que o golpe viesse

Do único em quem eu confiava

Foi tudo tão previsível

E, ainda assim, levei tanto tempo para compreender

Todas as vezes que foi ao palácio sem mim

Todas as vezes em que me fez sentir tanta solidão

Todas as vezes em que qualquer coisa parecia tão mais importante

Do que retornar para casa e fazer companhia àquela que tanto te amava

Procurei tantas razões

Procurei tantas desculpas

Procurei tantos motivos para perdoá-lo

Para trazê-lo de volta para os meus braços

Mas os braços que você queria apertar não eram mais os meus

E os beijos que desejava não eram mais os meus

Quando enfim voltava para casa e se deitava ao meu lado

O rosto em que pensava não era mais o meu

Será que a beleza e juventude da princesa

Aliadas às ofertas do rei Creonte

Corromperam seu coração heroico?

Ou será que nunca me amou?

Algum dia acreditou que eu era mais que sua espada

Que era sua mulher?

Ou construiu uma mentira

Apenas porque meus dons lhe eram tão úteis?

Se algum dia me amou

Certamente esqueceu com facilidade

Inebriado pelo perfume da jovem Glauce

Eu poderia ter lhe dado o reino

Teria lhe dado qualquer coisa que pedisse

Mas você escolheu ser infiel

Escolheu negligenciar todas as promessas que me fez

Sem nem ao menos me contar

Que nossa história havia acabado

Ah, meu herói, eu morri por dentro

No momento em que soube que o noivo da princesa

Era o homem que um dia foi meu marido

Morri por dentro enquanto todos riam da bruxa bárbara

Enquanto você unia sua vida a outra mulher

Morri por dentro enquanto toda a cidade compartilhava

Do infame segredo que guardou de mim

Ah, meu herói, eu chorei todas as lágrimas

E amaldiçoei todos os deuses

Quando enfim, a notícia chegou a mim,

A última a saber

Em pensamento, matei a mim mesma mil vezes

E a ti matei outras duas mil

Nenhuma palavra amiga me alcançava

A vida havia terminado

E não havia nada que ninguém pudesse fazer

Mas as lágrimas não me afogaram

E a tristeza não me matou

Depois de tudo o que vivi

Não seria a mulher que baixaria a cabeça

E assistiria conformada o começo da história

Que você pretendia escrever sem mim

Não.

Uma Feiticeira da Cólquida não permitiria

Que seus inimigos rissem por último

As lágrimas que verti

Levaram para longe o amor que senti

E deixaram para trás um ódio profundo

Tão cristalizado em mim

Que não se aplacaria até que muito sangue fosse derramado

Não o seu sangue, meu herói

Pois a morte seria castigo por demais leve para o que me fez

E os planos que eu tinha eram muito mais sombrios

Da flecha do Cupido

Restou apenas metal envenenado

Lançarei para você todas as maldições que uma feiticeira pode conhecer

E arrancarei de suas mãos traidoras tudo o que um dia amou

Deixarei que se afogue em amargura

E que lamente eternamente tudo o que me fez

Eu poderia ter sido sua rainha

Mas você me abandonou

E agora serei seu pior pesadelo

A cidade que o acolheu como herdeiro

Será agora tomada pelas chamas

Seu legado será destruído

Pois em minha fúria tomarei a vida

Da descendência que um dia lhe gerei

Estraçalharei meu próprio coração com a vingança

Mas não me importo

Pois o meu propósito será atingido

Com o seu sofrimento

Banida novamente, seguirei meu destino

E não há nenhum final glorioso me aguardando

Você destruiu minha vida

No dia em que atracou na Cólquida

E vou sofrer até o fim dos meus dias

Por tudo o que me deu, por tudo o que tirou de mim

Guardarei no fundo de meu coração envenenado

Todas as memórias sangrentas

E lamentarei todas as noites

Pelas inocentes crianças que tanto amei

E que por minhas mãos tiveram o pior dos destinos

Chorarei todas as manhãs pela terrível mãe que fui

Pela mulher que jamais voltarei a ser

Chorarei pelo resto de meus dias

Mas jamais me arrependerei

Pois o teu coração

Atingi como cumpria

E quando contarem a história do destemido líder dos Argonautas

É de mim que irão se lembrar