DESABAFO
Há em mim o desejo atávico de poder gritar,
Uma vontade enorme de poder vingar,
Um querer escandaloso de poder mudar.
Há em mim a sensação de vazio que maltrata e corrói a carne,
Que treme impotente
Diante de um país descontente,
Que silencia o medo e sufoca os prantos.
Crianças mortas por mãos indiferentes,
Crianças espancadas impunemente,
Crianças arremessadas brutalmente.
E, diante delas, ansiosa e sarcástica,
A mídia curiosa, buscando, na dor distante,
Alimentar o própria ambição, sempre indiferente.
Não, não tentem me calar agora,
Não quero que me mostrem a poesia de um mundo indecente.
Não me digam que o sol vai nascer mais uma vez,
Que estou viva e feliz,
Não me mostrem o azul do mar ou o pôr-do-sol,
Deixem-me chorar meu pranto de um mundo cruel.
Deixem-me chorar as Isabelas e os Joões,
Deixem-me pensar nas pequenas Marias,
Nos pequenos Paulos.
Deixem-me lamentar sua dor na hora da morte,
Sentir seu pânico no momento derradeiro
Chorar seus medos de crianças
No ato do carrasco infame.
Deixem-me tremer de raiva por pensar
Que o seu maior erro
Foi nascer no meu Brasil brasileiro,
Onde se morre de nada
E se matam crianças o ano inteiro.
Deixem-me, enfim, entregar-me à dor,
Acreditar que, de algum lugar,
Bem distante daqui,
Crianças nos espiam com desdém,
E suas almas brincam felizes,
Distantes de nós,
Mas seguras,
E, do povo que aqui ficou, se riem
E se vão, sem saudades