Seu olhar
Com o cair de mais uma noite maciça
Observo distante o andar sinuoso das horas na cidade
O acender das luzes e escadarias
Sentado no alto do vale eu mergulho em pensamentos
Os ponteiros se arrastam em cliques de uma dança macabra
E os ventos enregelados me abraçam sussurrando memórias perdidas
Meus olhos se fecham em busca de um momento feliz
Como um lobo que espreita paciente por algo que não vem
Eu aguardo nas sombras de mim mesmo
Por um dia melhor, um amanhã de céu azul
Uma luz que venha romper a monotonia de uma madrugada sem fim
Eu já não conto mais os dias, somente as horas até o amanhecer
Já não conto mais comigo, até mesmo os instintos me enganaram
A falta que me fazem os teus olhares mudos
Naquelas manhãs serenas de maio
Onde o sol se espreguiçava silencioso pelas folhas do quintal
E eu observava lentamente, detalhando cada segundo
Aquele brilho doce do seu olhar tão puro
Não sabendo o que nos esperava
Nós apenas vivíamos, sentíamos o que queríamos sentir
Nós nos fitávamos em silêncio, como crianças intrigadas
Sem pensar, sem medir ou calcular os desejos e sonhos
Seus olhos de encontro aos meus
Um sorriso quase encarcerado no canto da boca
Éramos dois
Ao encontro de nós mesmos
Éramos um só olhar de ternura e surpresa
Ainda hoje, na profundeza das noites cortantes de lua
Mergulho em mim mesmo e reviro memórias remotas
Busco nos cantos mais escuros aquele seu olhar tão sublime
Aquele momento em que nós nos vimos pela última vez
Onde nós éramos apenas mais um na brisa gelada do outono
Levanto como quem desperta de um encantamento interrompido
Disperso pela ventania repentina nas araucárias
No meu reflexo fraco e envelhecido
Observo meus olhos quase sem vida
Já não sou nem metade de nós dois
Deixei para trás o que restava de mim mesmo
Na incessante busca do seu olhar