MÃE, ABRE AS JANELAS...

Mãe, abre as janelas

só um pouquinho

desses teus olhos tão calmos

desse eterno silencio

tuas ambições tão terrenas

não sensibilizaram o nosso egoísmo

não enterneceram

nossos medíocres certificados

de papel couche

Abra um pouco as janelas mãe

das tuas ambições tão singelas

café preto bem docinho

bem quentinho

coxinha sem catchup

“da uma prata”

pra comprar um X Salada de 1 real

e uma coca bem gelada

Aquele desejo pueril

de sentir o sol cativante nas manhãs de inverno

o dia tão luminoso

roseiras despidas, o orvalho brilhando

brincando na teia de aranha,

o conchego gostoso do quintal

num desbotado banco de madeira

a mãe corrigindo um cacho teimoso

que quer se aninhar nos teus lábios

como um travesso colibri

Abre mãe as janelas

teu sorriso discreto pro gato

companheiro tão fiel de olhares

quantas coisas vocês diziam

naquela casa vazia

enquanto nós, correndo de joelhos,

a dura travessia

a um certo deus do egoísmo

Abra as janelas

porque teus passos tão mansos e dóceis

não afagarão mais a grama amarela, tão pisoteada

Do Hospital Adauto Botelho, do Philippe Pinel no Hauer

do Pinheiros que a senhora não viu ser demolido

onde há agora um shopping center

é mãe, hambúrguer com batata frita e Cineplex 3D

da mais dinheiro,

garoupas novinhas dona Anita

Abre mãe as janelas

as tuas mãos tão tremulas e ingênuas

não arrancarão mais uma pétala

da azaléia pink daquele belo jardim

do Hospital Nossa Senhora da Luz,

do Hospital Bom Retiro,

naqueles domingos

em que a enfermeira não chamou bem alto:

ANITA!!! VISITA PRA VOCÊ!!! ANITA!!! VENHA!!

Não, não fomos mãe, não houve visitas pra você, né?

Naquela tarde em que teu gato, sorrateiro no muro

saudoso dos teus afagos

“ de repente achou que os pardais

se esqueceram de voar”

Naquela tarde de Domingo

que o crepúsculo vespertino chegou, rosicler

mas sem waffer, poncã e chocolate prestigio, a coxinha dourada

e teus dois corações prediletos de doce de abóbora

maiores que o pacotinho que os traziam de papel marrom,

e depois

a térmica já incolor e sem a tampa maior,

de café bem quentinho, huummm

e pra dividir a dor com a amiga,

a senhora pergunta

Não teve visita Janira???

Eles nunca vêem Anita,

pobre Janira de olhos fugidios

banhados em santa resignação

Sabe mãe, parafraseando um certo mineiro

“ Viver é doloroso ”

Abre mãe as janelas

porque uns passos tão lentos e dóceis

não visitarão mas as tuas crianças

do Educandário Curitiba, do tio Araújo

Na Rua Anita Ribas no Hugo Lange

Esquina com a Mercedes Seiler Rocha

e seus diversos e perfumados eucaliptos

e seus domingos de pára-quedas

no vizinho aeroporto do Bacacheri

e voluntários trazendo pacotinho de doce

e olhares de afeto

Abra as janelas mãe

E esse câncer agora mãe

Palavra que não se diz:

“ Bate na boca moleque de merda!!!”

palavra que não se diz, desculpa mãe

mas que de repente se repete

Pois amanhece gritando nas nossas almas

chega como um ladrão, sem barulho, sem ruídos

chega com sua chuva de laminas precisas

recém esmeriladas

com seu leque de dores, é só escolher

vem zombar de nossas lagrimas

E esse câncer agora

que chega diante dos teus olhos tão dóceis mãe, longínquos

e chega nos oferecendo seu cesto de brutalidades

frente sua leveza

de lençol esvoaçante em varal

e esse câncer agora

que chega com seu histórico

tão invejável de vitórias

O Dr. Guerreiro

não vai passar esta manhã enfermeira?

a mãe viu como é lindo

aquele jardim do Hospital Erasto Gaetner?

Antes do Hall de entrada

Quanta gente né mãe?

Uma família irmanada

na esperança e na dor

ficava curioso vendo as placas das ambulâncias

para ver de que cidades vieram

e sabe tem uma homenagem naquele jardim

a uma Anita também mãe?

Outra mulher tão sublime

e suas enfermeiras tão atarefadas,

guerreiras de luz

Mãe, abra as janelas um pouquinho, vai

E que Jeová, Deus Poderoso

te de mais um pouco de sol

numa varanda florida, sem dor

com pingado e tua coxinha dourada

Mãe, abra as tuas janelas

mais um pouco de sol...

Sem Neozine, Morfina

Diazepam ou Aldol

Homenagem a Anita Cartes Alves

Nascimento – 23 de Maio 1953

Falecimento – 28 de Janeiro 2010

poesiasegirassois.blogspot.com

Davi Cartes Alves
Enviado por Davi Cartes Alves em 09/05/2010
Código do texto: T2247233
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