ANNA EUPHROSYNA

ANNA EUPHROSYNA

À memória da titia

Carmella Medeiros - carinhosamente, titia Mélia [1926-1998]

“_ Ave Maria piena di grazia,

Il Signore è con te,

Tu sei benedetta fra le donne e

Benedetto è il frutto del tuo seno,

Gesù...”

_ Vovó, continua, é tão bonito!

_ Ora, meus netos! A vovó então ora...

_ “Santa Maria, Madre di Dio, prega por noi...”

Vovó ao centro do quintal

e os netos acocorados ao redor.

Um sol de arrebol ilumina o fundo da quinta,

onde se avista uma ampla porta,

Divisa... por um fio.

O Casarão de finais do século XIX é

composto por dois amplos terrenos,

e comporta três lares, uma tríade:

vovô, vovó e titia Mélia; titio Lela e titio Briga.

_ “... peccatori, adesso e nell’ora della

Nostra morte, Amen!”

_ Vovó, vovó! Outra vez! Ora, ora, pra nós!

_ Não, agora não, meus netos! Ouçam, o vovô me chama! - exclama, um tanto aflita.

Com certa dificuldade,

a vovó deixa a cadeira

e entra na edícula - extensão da cozinha –,

que dá acesso ao salão da casa.

Os netinhos a seguem.

Vovô na poltrona:

“Armas Medeiros são de vermelho,

Com cinco cabeças de águia de ouro”

do sertão...

Vovô Chico,

do Rio Grande do Norte,

“De Canudos ascendia ...

o toque da Ave-Maria...”

pouco mais ao norte, o grandioso oceano;

pouquinho mais, à leste,

Ilha da Madeira,

Éden vulcânico. Travessia...

Medeiros

do norte Mossoró,

vovô ruma ao sul...

Das paisagens campinenses

nor-destinadas

às paisagens campineiras

orvalhadas.

Vovó Carmella,

do Lácio,

do sul,

mais um pouco, à leste...

Peregrinação em sudoeste.

Oração ancestral: “_ Enéas pio! Piedade!”

Nonna Mariquinha

e nonno Angelo Bícego atravessam o

Mediterrâneo...

da Calábria

alcançam o Norte... e enfim, o Sul-Atlântico.

Do porto de todos os peregrinos,

de Santos às portas de Campinas...

Bisavovó parteira,

com o auxílio de anjos e santos,

vidas novas trouxe ao mundo na Vila Nova,

sob o amparo da “Imaculada Virgem Mãe de Deus

e nossa Mãe, Nossa Senhora das Graças”.

“_ Santa Maria, Madre di Dio, prega por noi...”

Alto do Taquaral,

Liceu Salesiano,

Guanabara.

Rua Dona Ana Eufrosina, 48...

Casarão da titia-vovó Ester, lá no fundão,

na Buarque de Macedo;

quadra abaixo, Primeiro de Março, alto casarão,

cercado de murões.

_ Titia Mélia, que casarão é este?

_ Psiu! Casa de loucos, é Hospital, “César Bierrembach...”

_ Seguimos em frente, titia?

_ Só mais uma quadra, e chegaremos à Fábrica de Meias.

Coração partido ao meio, o da titia. Tempos atrás,

há muito tempo, década de quarenta,

Euphrosyna jovial,

titia Mélia prepara o enxoval,

em viagem matrimonial...

“Ana [Euphrosyna] minha irmã ...

Quem é este estranho hóspede que entrou em nosso palácio?

Que nobreza exprime seu rosto!”

Ai, desgosto, a trágica paixão ancora no coração da titia...

E sem compaixão,

titia retorna ao chão...

em abandono, lá longe, no Rio de Janeiro,

junto ao vovô, retorno, coração em dor doida, doída, remoída...

“... feliz fora se nunca os navios troianos tivessem tocado os nossos litorais...

Que sentimentos eram os teus, ó Dido, diante de tal espetáculo?

Que gemidos soltavas... todos aqueles clamores? Maldito

Amor, a que não obrigas os corações mortais!”

_ Titia Mélia, que prédio é aquele, ao longe?

_ É o Liceu Salesiano, da Nossa Senhora Auxiliadora.

Noites de verão...

Titia Mélia em hora extra, no lar,

na edícula.

Tujás ao redor da ampla mesa

a desenrolar,

sob o olhar da titia Mélia,

novelos de lã, de algodão...

fios esparramados pelo chão.

Titia nada tece. Penélope às avessas, nada mais espera,

no Guanabara,

do carioca, titio André.

Trimmmmm... toca o telefone.

Vovô atende.

_ Carmella, é a Nise, de Santo André!

Titia Oranise...

“Chácara Oranise”... toda semana, vovô Chico 4, em seu jipe, que solão!

À porta de nosso lar, no Castelo, na Frei Manuel da Ressurreição, 464:

_ Tujás, vamos à chácara!

Eu e meu irmão, Maurinho,

junto ao carinho do vovô,

rumo à Santa Lúcia!... Estrada de chão, de terra...

Titia-vovó Lúcia! Lá na Delfino Cintra,

casarão quase ao centro da quadra, em rua de curta extensão.

Quintal imenso! Vovô abre os portões

da chácara;

nós, dois irmãos, corremos ao longo do imenso

gramado, todo verdinho...

Adiante, ao centro do amplo jardim,

o Casarão da Chácara.

Dois caramanchões!

Ao fundo o pomar:

laranja, lima-limão, pêssego, jabuticabas!

Céus, é fruto que não acaba!

Avançamos terreno...

_ Mauro, cuidado! Aí, pertinho de você,

onde tudo acaba!

no riachão, uma cobra!

_ Vovô, vovô, tem uma cobra aqui, dentro d’água! Vovô!

Vovô deixa os porquinhos à própria sorte

e corre ao nosso encontro.

_ Olha, vovô, uma cobra! Mata, vovô!

_ Não, não, não tenham medo, tujás, é somente uma cobra d’água, é inofensiva. Não faz mal a ninguém. Vamos, tujás, alimentos aos porquinhos e partamos, já é hora!

“Antônio Conselheiro há vinte e dois anos, desde 1874, era famoso em todo interior do Norte e mesmo nas cidades do litoral até onde chegavam, entretecidos e quase lendários, os episódios mais interessantes de sua vida romanesca ... vinha de uma peregrinação incomparável ... por todos os cantos do sertão ... as torres de dezenas de igrejas que construíra; fundara o arraial de Bom Jesus...”

“_ Ave Maria piena di grazia...

Prega por noi...”

Porquinhos lindos, multicoloridos, todos grunhindo...

Pereiras, abacateiros, o perfume

das flores de laranjeiras.

“_ Amen!”

Vovô, Chico 4, ex-proprietário

do Ponto de Táxi,

da Estação da Paulista

à Basílica do Carmo.

_ Táxi !

_ Seu Chico Quatro, por gentileza, rumo ao hotel.

Isaurinha Garcia, Linda Batista, Dalva de Oliveira, Marlene, Emilinha Borba...

As cantoras do Rádio e

a Estrela Dalva brilham em noites às ondas sonoras da rádio no Casarão da Dona Ana Eufrosina...

Os jardins da vovó Carmella exalam

o cheiro dos pinheiros, pinheirinhos, limoeiros,

hortelã;

do clã Medeiros à

Ponte Preta: titia Mariquita;

ao Taquaral: titia Lola;

ao Jardim Guanabara: titia Landa;

à Vila Nova: titio Vadinho;

ao Jardim Nossa Senhora Auxiliadora: titio Lilim;

até o Castelo: mamãe, papai e nós, os tujás, além da mana Dedezinha.

_ E a titia Sofia, papai?

_ A titia Chiquita? Ah, morreu de dor, d’amor... pouca idade, há muito tempo!

“Tais eram suas preces, tais choros que a irmã [Ana/Nise] leva e torna a levar a Enéias; mas ele permanece insensível a todas as lágrimas e permanece impassível diante de tudo o que ouve. Os destinos se opõem e um deus fecha os ouvidos...” do amante, do amado.

Titia Chiquita renunciou à vida; abandonada, perdeu a própria auto-compaixão, não mais se alimentou; década de 40...

“Então a infortunada Dido, aterrada com o seu destino, chama a morte: aborrece-se de ver a abóbada do céu.”

Ó Eros, cruel! E o sangue espumando pelo quarto em tuberculose...

“Íris, pois, estendendo-se pelo céu as asas cróceas e cobertas de orvalho, que refletiam ao sol os ancenúbios de mil cores, voa e detém-se sobre a cabeça de Dido: ‘Levo, como me foi ordenado, este penhor sagrado a Dite e te liberto do teu corpo’, diz e com a destra corta o cabelo: dum só golpe todo o calor se dissipa e a vida se perdeu no vento.”

Anna Euphrosyna jovial,

é carnaval de 1954.

Papai é pai da Dedé, minha maninha.

Cores, brilhos, perfumes e fantasias no Casarão Medeiros.

Titio caçula, titio Vadinho, menininho a arrastar um

jacaré, imenso, verdinho;

papai novo, papai-cegonha;

o agregado, o primo, o tio Mané, de “muié”! E outros balangandãs...

E todo clã descia a Brasil, Avenida abaixo;

o bloco percorria a Orozimbo Maia e

atinge a Glicério.

Um lança-perfumes atinge também os olhos da cegonha! Do papai, do Chiquinho!

Papai a girar em público,

a fantasia... difícil dela se livrar, e os olhos a queimar,

e a multidão a caçoar!

Titio Vadinho, onde? Menino perdido em meio ao povão!

todos partem, em atropelo, em busca do Vadinho;

e então, dentre os foliões, já em avançada madrugada,

eis Vadinho! a perambular, adiante... em marcha, de ré, reticente, perdido...

pelas ruas centrais, chorando, e a arrastar

o verdinho-imenso jacaré.

_ É, o menino foi localizado! - diz o seu guarda.

Quarta, de cinzas...

Vovó a orar:

“ _ Santa Maria, Madre de Dio, prega por noi peccatori...”

Anna Euphrosyna alegre,

as Copas de 58 e 62...

Pelé!

cheiro de cerveja entre comes e bebes,

titios em lambretas,

vovô no calhambeque

a buzinar a dupla vitória

dos Brasis na Suécia

e no Chile...

futebol ao vivo,

dois invernos

em família,

e o inferno da barulhada, dos gritos de “_ Gooooooool”.

Passou...

Anna Euphrosyna agradável,

o cheiro de Natal,

em noites de verão,

e a árvore de Natal

da titia Mélia!

Nunca vi nada igual,

no salão do Casarão,

em pinheiro vivo!

Como transportá-lo do

jardim ao vaso?!

Enfeite natalino,

em todos natais lindos.

Sempre aos domingos,

Priminha Lenita, eu e Dedezinha rumo

ao cinema…

Destinos traçados:

“My Fair Lady”, no Windsor! Ingressos esgotados.

“O Mágico de Óz”, no Ouro Verde! Lotado...

“O Suplício de uma Saudade”, no Brasília! Fila, filas...

“Assim Caminha a Humanidade”, no Alvorada! Pequena morada, abarrotada...

“Sete Dias de Maio”, no Voga, finalmente há algumas últimas vagas.

_ Lenita, o filme é proibido para menores de 10. Eu tenho 8 anos!

_ Fique atento, não tema, passe pela bilheteria, desatento... não olhe para trás!

Aproxima-se a minha vez; bilheteiro à frente, meu olhar sorrateiro... Passei!

Olho em frente... Telão... era uma vez “Sete Dias de Maio”.

Anna Eufrosyna enlutada.

Vovó Carmella caridosa,

doentes hospeda em edículas plantadas

por todo quintal.

Alguns agregados vencem: tio Mané!

Outros sucumbem. Mortes,

Annas

enlutadas; numerosos velórios no

salão do Casarão.

Primo Celsinho apavora os tujás:

_ Vamos dormir na casa da vovó?! Hiiii, lá tem assombração!

_ Desce a noite e as sombras cobrem Anna. Eu e meu irmãozinho, ambos apavorados, com as

histórias do primo Celsinho.

Da porta entreaberta do quarto,

avista-se o salão, na escuridão, ex-câmaras fúnebres...

Primo Celsinho veste pijamão, na cabeça,

e, durante a madrugada, salta da cama, puxa nossas pernas!

Ambos tujás aos berros:

_ Vovó, vovô, é fantasma! Puxou as nossas pernas!

_ Carmella, o que os tujás aprontam a esta hora da noite? - murmura vovô.

_ Nada, nada, Chico, só estão assustados.

_ Psiuuu, foi o primo Celsinho que brincou com vocês. Todos dormindo!

O silêncio e a escuridão voltam a reinar no quarto, no salão, no Casarão, na Anna toda enluarada.

Súbito, a voz do primo Celsinho tudo rompe... ei-lo a recontar, em meio à escuridão, histórias de fantasmas; o da bota; na esquina da rua da vovó, ao centro da quadra, na linha da Mogiana,

ao fundo: uma Santa Cruz. Antigo acidente: um certo homem teve ambas pernas decepadas pelo trem, e a vida lhe foi tomada...

e... “Logo que a Aurora, de dedos de rosa, surgiu matutina alça-se...”

... a retomada!!

... eu ainda reticente, entre o sono e a vigília,

em deLírios, idílios...

Ah, minha amada, minha infância...

“_ Não prossigas nessa história tão triste”. Ora, por que insistes?

Pareces a uma criança! Tu não deves viver como criança.”

_ Mas... o Casarão da vovó, tudo foi demoLido, nada restou!

“_ Tens idade demais para isso...” Recries a esperança!

_ Esperança?!

... espera,

errâncias,

heranças,

lembranças...

_ Espero, contemplando as estrelas,

Héspero!

Eis, então, Vênus, do Lácio, do Sertão...

Renasce a Estrela Vespertina!

“Amen!”

PROF. DR. SÍLVIO MEDEIROS

Campinas, janeiro de 2007.