O GATO
José António Gonçalves
O meu amor deu-me um gato,
para me ajudar a vigiar a casa.
Mas acabei por descobrir
que era a mim que o gato
vigiava.
Nos seus olhos havia tempo,
um modo lento de me contemplar;
eu já não sabia se era ele quem vigiava
ou se era eu a vigiar.
As suas orelhas logo denunciavam
o mais pequeno e oculto movimento;
não sei, sinceramente, o que fixava:
se um velho bailado de sombras
ou o meu próprio pensamento.
O meu amor deu-me um gato,
para me fazer companhia.
Apesar de me sentir vigiado,
nunca soube, deveras, o que fazer
sempre que ele desaparecia
e me deixava, sozinho, ao anoitecer,
depois de dormir todo o dia.
De uma vez experimentei chamá-lo,
do beiral da minha penumbrenta janela.
E ele não respondia. Estava com ela,
contando cada pormenor do que via,
no silêncio dos meus aposentos.
E o pior de tudo é quando,
nessas misteriosas visitas, lhe revela
os segredos, os tesouros que escondo,
no profundo breu dos meus pensamentos.
José António Gonçalves
(inédito.30.04.04)