Lembrete: Operária do Último Vagão
Eu sei, nós vivemos em uma guerra...
Boa parte do tempo parece não haver condições materiais que nos favoreçam: o tempo é escasso, os dias são curtos, as noites de descanso ainda menores. Carregamos mais olheiras do que sorrisos, mais rugas do que traços de felicidade, sentimo-nos marcados pelos traumas que nos foram deixados, como um ferro quente que derrete o couro do boi - Esse é o homem, que vem e abre feridas que parecem impossíveis de serem fechadas. Trata-se de fendas, cicatrizes da alma.
Estamos em guerra com a ausência, a ausência que se apresenta em forma de não ter tempo, dinheiro, produção de si - Aliás, a guerra é sempre sobre produção, e nós sempre estivemos no último vagão da desordem chamada progresso.
II
Nossas armas parecem fracas, o trem é imparável e esmagará todos que se oporem a seu caminho. Ele é alimentado pela combustão que nós, os operários do último vagão, produzimos para subsistir no trem - Pular pela janela, não é uma opção.
Temos foices ao invés de armas de fogo, martelos ao invés de costas quentes (Mesmo que sejam as nossas costas que ardam com o vapor quente do último vagão) - Falta-nos, porém, o machado de dois gumes - A balança de Xangô, que pouco tem orado por esse vagão sofredor. Talvez o maquinário do trem tenha nos deixado surdos, incapazes de ouvir a sua voz. Nós também nos acostumamos com o silêncio de nossas vozes - Tememos o ferro quente em nossa pele.
III
Adiante tudo, vai aqui um lembrete para os operários do último vagão:
- Não desanimem, somos os únicos que sabem apreciar a simples felicidade. O topor até dos vinhos mais baratos nós satisfaz quando partilhado com os nossos.
- Não comam do pão, nem consumam do circo ofertado pelas outras classes de vagão - Os verdadeiros artistas são todos nossos.
E o mais importante: Resistam ao ferro quente!
Você não é fraca,
Você não é insuficiência
Você não está derrotada
Você não está velha.
A chama, somente a chama organizada é capaz de impedir o trem imparável, não afaste os seus de você. Benze teu corpo, unge as suas olheiras com óleo, despreze o fel de tuas rugas, cuspa o vinagre.
Chama, Chama, Chama Xangô!
Pra arrancar o trilho com fogo
IV
Eu sei, nós vivemos em uma guerra...
Mas nós ainda estamos vivos.
Pra cima deles, passarinho.