Um século
abri a página do jornal pra saber onde esteve meu eu
na noite passada
na noite anterior
na noite em que se perderam minhas pernas
inútil procurar o meu eu sem saber se as portas da minha cozinha estão trancadas, com rachaduras profundas e o cheiro de gás escapa como um menino escapa da morte ao nascer
os jornais estão perdidos
as lavouras florescem cabeças penduradas em armas
as nações conclamam a paz para matar e morrer de alegria
as pinturas são roubadas da África
e a esperança relincha na cara do velho mundo
um século é o tempo para me encontrar
encontrar a história
encontrar as barbáries da mutilação do meu rosto
encontrar as noivas escondidas nas prostitutas
encontrar os devassos que há dentro do Papa que existe em nós
encontrar as depressões que só me fazem forte depois de litros de absinto mergulhado na minha escuridão e veia...
um século ainda virá para se compor as mais belas obras incompletas
um século ainda virá para nos defender do império brutal que nasce da nossa própria dominação natural
da fraqueza
da dor
das inutilidades modernas que só me afogam como um grande mar de leite fervendo
onde meu corpo é mergulhado de mansinho
e gozo de dor
luxúria
vertigem
insólitos momentos de lucidez dentro do século da mimha alma
dentro do vácuo
dentro do seu suicídio comum e social...
um século é tempo demais para minha consagração
é tempo demais para sua morte se tornar um poema
é tempo demais para as explicações metafísicas do amor letal
sou um século do meu tempo imperfeito