A Poesia e as pérolas
*
*
A ostra descansa no fundo do mar. À profundidade
do fôlego dos pescadores, protegida
das correntes que ondulam as membranas
das medusas transparentes, dos sons
estranhos emitidos pelos seus marítimos
parentes, escondida à superfície
da leveza beige das areias.
Vive sossegada, mas doente.
.
A ostra sofre de uma lesão letal. Uma areia,
um corpo intruso, agressivo e real, entrou
com a corrente, instalou-se no seu
corpo breve. E isso faz-lhe mal. Não consegue
rejeitá-lo. Segrega então uma substância fina,
macia, tentando dissolvê-lo. Mas forma-se um
tumor. Que lenta, pacientemente,
lhe invade o breve corpo. Brilha macio
como a morte, redondo e total como a morte,
branco e rosado como a aurora boreal.
.
Está doente. Não se alegra aos reflexos da luz
que se cruzam sem parar,
não se goza das cores das anémonas a abrir-se e
a fechar-se como as pulsões de um
coração com vontade de viver, não
inveja os rituais amorosos dos peixes e crustáceos.
.
Não percebe os perversos truques dos
predadores nem os hábeis esconjuros com
que se escapa à morte. A ostra está doente,
obcecada em digerir aquele segmento
intruso, micromundo agressivo reflectindo
o exterior, a provocar-lhe incomparáveis
dores, indiferente à boa e à má sorte.
.
Sabem-no os pescadores. Por isso
mergulham. Arrancam-na ao seu habitat.
Abrem-na. Extraem-lhe a pérola.
E jogam-na fora.
.
Os grandes apaixonados da grande Poesia
lêem os grandes poemas enroscados no sofá.
*
*
© Myriam Jubilot de Carvalho
15 de Maio de 2004
*
*