ESPUMA DE PEDRA

José António Gonçalves

É espuma de pedra vulcânica,

reparo seguindo as sombras,

todos os recantos do meu caminho.

Salgada, em brasa, por um dia

beijou a terra e nela deixou-se

ficar algum tempo, cristalizada.

Tem o seu coração de lava

revestido com os tecidos negros

do silêncio das noites de Setembro.

Não sabemos se ainda bate, se bombeia

sangue quente, se desespera por

imobilidade, mas deita-se ao sol

e ao escuro, em suave compostura.

Provavelmente apenas se encanta

com o espelho celestial da lua-cheia,

aveluda-se ao andar dos animais

ou vibra com os delicados pés

orvalhados das filhas da natureza.

Passaram tantos milhões de anos

e ali ainda dorme. Não me espanta

que no decurso de uma madrugada

dedicada às danças e ao vinho,

no intervalo do respirar de uma reza,

alguém a desperte. O mar aguarda

e a terra sabe; com ela não há segredos.

Os homens mantêm-se fiéis ao muro

da petrificação. Escondem os medos

na poeira das montanhas, na areia

do calhau. Cada um deles sabe

que um dia acordará sozinho,

no lugar em que apenas cabe

um outro coração, novo, vindo

do futuro. No centro da luz

um mundo virgem espera. Palavras

foram inventadas para serem escritas

no momento. Haverá estrelas, cânticos,

fachos, uma cruz, templos, procissões,

lágrimas depositadas num andor.

Existem orações que não serão ditas

se acontecer o milagre. Algures

numa gota de água irá descobrir-se

vida, um sopro persistente de amor

a construir as amarras da ilha de Circe.

José António Gonçalves

(inédito.17.03.05)

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Enviado por JAG em 27/10/2005
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