Descompasso
AUSÊNCIA
Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.
Carlos Drummond de Andrade
Descompasso
E ele se fecha para o mundo lá fora
ela faz de conta que entende
tenta seguir a toada
das ausências consentidas
no ledo engano de chegar à cumplicidade amorosa
Ele silencia
passa a viver do seu mundo
hermeticamente fechado
aos ruídos da vida
ao chamado do amor
Ela vira gata manhosa
faz uma aposta silenciosa
consigo mesma:Ainda serei o seu barulho de chuva
sua sonata em Sol maior
o farfalhar do vento nas flores da janela.
Ele canta
às vezes dança
e o faz com alegria
mas só às vezes
quando a ausência
que se apossou de sua alma
lhe permite ousar
sair
viver...
Ela?
foi desistindo do faz-de-conta
foi se cansando dos ocasos tão recorrentes
os que apagam na memoria
o toque
o abraço
o beijo
a contemplação
a sintonia
que não permite que a ausência
se torne plural
e seja também solidão irreversível.
Ele
ela
eu
você
O mundo
as pessoas...
Estamos todos nós vivendo a ausência de Drummond?