COMO VIM AO MUNDO

Lembro dela assim, um tanto embaçada,

como se tivesse sido tragada pelo arpão dos medos,

talvez amordaçada pelas fronhas puídas de alguma dor.

Era linda, como nunca poderia ter suposto ser,

cabelos desapegados, alucinados na raiz,

têmporas aflitas se fazendo de delgadas, coitadas.

Lembro dela acuada num poente sem ventre, nem cor,

mulher surrupiada de desejos, absorta na sua caatinga solitária,

seus peitos pareciam querer alçar voo solo,

suas mãos padeciam de sangue - estavam secas e mortas

só esperando o gotejar da vida.

Quando então a coloquei no meu colo, entregue, sem respiro vital,

meus suores se rebelaram num motim infernal,

falando que agora nada mais havia a revirar - nem a recuar.

Então me lancei nas suas ancas de gazela estrebuchada

e nos amamos como vértebras esmiuçadas sem nexo, nem razão,

como fétidas roupagens de um cerimonial cego,

talvez algo mais que pouco tentei desanuviar de mim.

Mulher descascada, desacatada, deslambida,

meio têmpora espevitada dizendo pra parir seja lá o que fosse,

um tanto alforriada dos meus próprios vendavais,

um tanto caramelada por te me feito assim.

Fomos então juntos do delírio ao velório,

como se pouco combinássemos de nós mesmos,

como se poucos nos untássemos numa sinfonia de latas de lixo,

como se pouco nos afogássemos de um folguedo qualquer.

E nos amamos feito duas acéfalas criaturas,

nos untamos no mesmo pingente de gozo,

nas mesmas falsetas douradas que nos embrenhamos a cerzir

dos nossos próprios e vorazes corações.

Assim fomos penetrando na noite, arrancando seu hímen com furor

de aprendiz,

e como foi bom, como foi. Como foi.

Desta simbiose doida fluiu meus berros, meus encalhes,

meus estopins, minhas ferrugens, meus conventos sem janela.

Desta simbiose surrada fez vir à tona meus respingos de palhaço,

minhas desaventuras surras, meus combalidos tecos de gente em que me ecoei, em que me encolhi, em que me estanquei.

Sou grato por cada vilão encardido quer arrancou de mim, num fórceps daliniano, feito tarântulas na sua apoteose mais bela.

E foi assim que vim ao mundo.

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Oscar Silbiger
Enviado por Oscar Silbiger em 02/12/2017
Reeditado em 02/12/2017
Código do texto: T6188425
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