UM CORAÇÃO BOM V
... sim,
a vida foi dura desde menino,
ainda me lembro do frio,
da chuva pingando
à noite,
em minha cabeça, daquele telhado
escurecido pelo tempo;
ainda me lembro
dos crepúsculos sangrentos,
dos egos purulentos,
das caixas
de picolés às costas,
sem chinelas, sem nada, como que
a contribuir com a loucura
do mundo;
ainda me lembro
do gabinete e da prepotência dos professores
e letrados, e demais obesos
assoberbados;
ainda me lembro
das surras, de mendigar balas
e ossos de pés de galinha
feitos na fornalha;
ainda me lembro
da primeira namorara e, a seguir,
da primeira traição por ela
consumada;
ainda me lembro
do pequeno amigo, morto fincado
aos ferros por uma carroça
carregados,
quando pensava
voar com sua bicicleta;
ainda me lembro
do meu ato covarde, ao correr,
vendo meu outro amigo, ainda em criança,
morrendo soterrado;
sim,
em criança já enfrentava fantasmas
severos e o esquecimento
não tem rotas de fuga;
ainda me lembro
de tanta e tanta coisa agora
ao meu fim bastardo;
e ainda me lembro
de quando falaste “jamais
farei mal para tu”;
e o esquecimento
não tem portões nem rotas de fulga,
e em meio a tantos nevoeiros
jamais esquecerei essa
sublime luz.