O meu sequestrador
Afeiçoei-me a meu sequestrador porque afeiçoa-se.
Porque foi o único que apresentou-se me como capaz
de me arrancar a vida e manteve-me vivo e distraído.
O desconforto de estar sequestrado era ínfimo
diante das indizíveis virtudes de outro conforto,
forjado no calor da angustia infinita das gentes,
o de falar a outra alma humana sem receios,
o de jogar-lhe na cara verdades gritantes
preteridas a outros mundos,
produzidas em outros tempos de minha vida
e ainda assim saber que sou valioso.
Talvez por isso não ter falado nada de sórdido,
nada que dois amigos antigos não falariam um para o outro
e depois de xingarem-se aos berros e sorrisos
não se xingariam outra vez e se amariam com mais ternura.
Quantos outros, ó céus,
quantos outros, meu deus,
não quiseram assassinar-me à moda corrente,
mas não puderam e apresentaram-se como inofensivos.
Meu sequestrador não me matou porque não era vantajoso,
e a todo momento me foi tão ameaçadoramente perigoso
que nunca viver foi mais humano e abjeto e lúcido e iluminado.
Não confiai na fraqueza, filho de teu pai,
apenas a força aconselhar-te-á o passeio por plagas coloridas,
só ela te fará beber das fontes da vida
e te esquecerás de quando eras apenas um animal
jogado à sorte nas mais baixas consequências existenciais.
Viver é apenas a consequência mais descabida
de acasos infinitamente entrelaçados,
e teu lugar no mundo é exatamente onde estás,
nem mais à esquerda nem mais à direita.
E se buscas um sentido qualquer em ti,
para frente ou para trás está de bom grado.
Saibas que o cosmo não tem por ti nenhum agrado,
que tudo existe e nada é sagrado,
que tudo é triste e a tristeza não é um fardo,
mas apenas a dissipação necessária de energias
que nos integra a tudo.
E essa entrega ao todo que nos fenece
é a obviedade maior de porque tudo falece
para que tudo exista
e nada seja eterno como o todo que nunca morre.
Vê. Na vida os disparates são mais simples,
razoáveis, desconhecidos, desprovidos de audácias,
eloquentes qual falácias como a própria natureza.
E é por isso que vermes se alimentam de seres sublimes,
mas não antes de seres sublimes terem sido vermes,
parasitas, sublimadores de energias alheias, com manias de grandeza,
afim unicamente da grandiosidade de suas próprias energias,
em busca da glória de todos os prazeres,
ou por satisfazer o constante desespero de existir somente.
A consciência maior que tenho em mente
é que nada vale a pena, mas eu quero e isso me faz viver.
Meu sequestrador era o parasita mais perfeito e banal,
o que melhor falava de mim pra mim,
era um elegantíssimo escroque, ser desprezível de caráter imundo,
a argumentação encarnada de porque explodir o mundo.
Eu desejei conscientemente por minutos eternos
a todo o custo e qualquer circunstância
presentear todos os meus desafetos com uma bala na testa,
meus afetos eu quis matar sob a mais pura calma.
Haver beleza era uma consideração piedosa e vil.
O gesticular delicado de um chá de uma tarde primaveril.
Ai, as flores e mortes sem sangue!
Me consome um desejo febril,
coisas que me ocorrem nas prostituídas noites amenas de Abril.
Alguns disseram que me amavam, os que mais me machucaram,
outros, covardes que eram, não tiveram coragem nem pra me odiar.
A pessoa que mais me amou foi quem mais odiei.
Todo o resto estava fora do lugar, como sempre estivera.
É de perguntar-se se o fora não seria o lugar das coisas,
e perto de alguma não estaria outra coisa que ali sempre estivera.
O lugar melhor é lugar nenhum.
É bom duvidar da vida.
Mas, até hoje, só meu sequestrador me teve amor.
Mas pense!
Amor é desejo e desejo é falta.
Na presença amamos o que nos alegra e eu tinha um impasse.
Temia que sua falta após nossa separação me abraçasse
ou sua presença deixasse em alta os meus dias.
Eu desligaria meu sequestrador desse mundo para que não o amasse,
o único que me trouxe alegrias.
Paguei-lhe o valor total do resgate,
convidei meu amigo para beber um uísque nacional
e o matei a garrafadas porque eu quis.
O matei depois de desabafar as agruras da vida e quase chorar.
Pude ver em seu coração que ele sofria e era um homem respeitável.
Nunca uma contradição mais inconveniente.
O matei porque não era possível haver dois de mim no mesmo espaço.
O matei porque esta é a ordem natural de tudo,
matar a todos que se quiser matar sem exitâncias piedosas.
O matei porque seria insuportável se não fosse assim.
Matá-lo terá sido a significância maior da palavra viver.
Eu bem tentei valorizar a tudo, não desprezar a nada,
mas esta vontade de ser mais antigo do que realmente sou
é conveniente e inexplicavelmente maior que o mundo.
Vivi entre a música dos meus avós e bisavós
e só isso controlava, não de todo, minha ânsia de sonhar.
A falta do meu sequestrador desvirtuou a terra
e os sistemas sintetizam a sintomática solução.
Qual é a flor que nunca seduziu olhares?
Apagadas todas as luzes, serram-se os olhos e as borboletas.
Eu é quem jazerei no meu túmulo. Só.
Eu é quem sentirei o peso da terra como o ato maior do destino.
Eu é quem terei em minhas vísceras embriagadas
os dentes da gula sanguinária do tempo que a tudo corrói.
E se a vida é um finito processo de se perder
(nascer, putrefazer e morrer)
eu abraçarei o mundo que também morrerá,
e no saldo nulo que no fim serei,
serei lembranças inglórias de umas poucas glórias,
construirei a atroz muralha da vida com minhas histórias,
e rirão dos meus delírios, forjados das páginas que leio,
da música que ouço, de tudo que amo e odeio.
Mas eu tenho certeza em meu coração,
juro por tudo que meu olhar já viu,
que antes de partir por minha mão,
depois do meu ato assombroso e frio,
deixando o haver sem reação,
meu sequestrador me olhou e sorriu.