DEVIDAMENTE

José António Gonçalves

Esta perene ideia de rever nas águas

o teu retrato está morrendo com a distância

ou com uma seca a que não está habituado

o inverno por dentro da minha alma

Como pode uma imagem sobreviver

à sua memória? Não há um papel

consagrando o momento, nem um reflexo

dirigido para um espelho de sensações

a lembrar os contornos do teu corpo

ou uma lágrima navegando pelo teu rosto

até ao centro obscuro do universo

Mas sinto-me prisioneiro desse riacho

registado na miragem breve de um tempo

sem outra referência, sem a lucidez do vento

que te beijava o pescoço enquanto o sol

se ia embora e eu não sabia como parar

toda essa voragem de movimentos

só para te dizer uma palavra cheia de lírios,

uma brisa que marcasse o dia, a hora, o mês,

fosse Janeiro, Março, Dezembro ou Agosto

Não houve mais nada do que um relâmpago

a chispar-me o coração, mas o nevoeiro

era intenso e seguia os teus passos na paisagem

enquanto farrapos de nuvens te desenhavam

atabalhoadamente e um punhado de sombras

procurava reter o teu odor entre as flores

por onde voavas como se tivesses asas

Ao contar tudo isto com a voz embargada

de saudade a minha mãe, ela disse que precisava

de sofrer mais ainda e que só depois ficaria claro

se não era apenas uma história sem importância

mas uma recordação do nascimento de qualquer coisa

preciosa, muito parecida com o palpitar

de uma ferida que mais tarde incerta e duvidosamente

poderia ser raiz e fonte do amor verdadeiro

e eu não a soube escutar devida

mente

José António Gonçalves

(inédito, 11.12.04)

JAG

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JAG
Enviado por JAG em 08/08/2005
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