CHEGASTE-ME EM SONHOS

Esboço de carta para Ofélia

sem que Pessoa venha a saber

José António Gonçalves

Chegaste-me em sonhos. Nem era uma praia,

uma ilha deserta, uma gruta pré-histórica,

mas dei por mim a escrever-te cartas de amor

com estalactites, como se banhasse o chão

a derreter-me a alma com o seu frio líquido

e o seu ridículo fugaz, desproporcionado na solidão,

mas ridículas não são as cartas, apenas as palavras.

Via-te como uma deusa, uma desconhecida

filha de santa, pastora dos rebanhos sagrados

da montanha, amante da poeira de livros antigos

em homenagem à passagem do tempo, provadora

de líquens e cultivadora de plânctons, observadora

de peixes em movimento, mascarados de adjectivos,

nadando fora dos aquários ainda sem destino.

Embebido na angústia, à luz frágil de uma fogueira,

medito em coisas únicas, em quietos sobressaltos

de sombras espalhando-se no silêncio das paredes

e como foi bom apareceres por aqui, no descampado

das páginas por encher de ideias e de folhas verdes,

como as das árvores mais altas, usadas para desanuviar

a chuva nas pálpebras dos seres tristes. Anjos acabrunhados

e olvidados da sua missão obrigatória, de se render

aos benéficos percursos, desenhados por novas mãos

apaixonadas pelo teu corpo, onde não se vislumbra

até onde pode ir o sofrimento. É uma poção envenenada,

impura, a juntar na dor as carícias, como numa tempestade

se procuram os sobreviventes temerosos da morte,

e a colocá-los em altares da eternidade, na escuridão.

Olho-te nos olhos e encegueiro. Confesso-te

a impossibilidade de manter a imagem precisa

que me atormenta no centro destas palpitações

a invadir-me a memória. Mas condescendo, aceito

o preenchimento de todo este vazio, deste nada

cristalizado em versos, com o eco do teu chamado,

ciciado nas noites infinitas, obrigando-se a partir

em permanente viagem. Não conheço, ou já esqueci,

o mar de sentimentos que antes me oprimia o peito.

O dia, pressinto-o agora, fica muito longe de mim,

construído com o vão arfar de um pesadelo alado,

sepultado em ruínas pelo matagal de um existir

a que no eco das distâncias recuso revelar um fim.

Para relembrar-te deito-me com um monte de pedras

e abraço-o, acordando de madrugada, clamando por ti.

José António Gonçalves

(02.11.04)

JAG
Enviado por JAG em 08/07/2005
Código do texto: T32199