ICONOCLASTIA

Na primeira das últimas noites
virei para te destruir:
vou dilacerar teu raro coração
e arrancar teu cabelo dourado
e exilar das órbitas teus olhos nordicamente verdes

Vou te desconectar,
parte por parte,
e jazerás no chão,
parte por parte ...
Andarei entre os teus destroços

Não gritarás ou xingarás
(tua educação fidalga não permitiria)
Desencarnarás tuas formas européias e pálidas

Ah! eu preciso te destruir,
destroçar, desmascarar ...
- Derreter-te entre meus dedos ...

E depois vou chorar por mil e duas noites
vou te exilar num canto inútil da memória
vou matar meus desejos
um a um,
parte por parte ...

Mas, não sei bem quando,
outra vez vou te procurar,
outra vez parecerás imprescindível ...

... e na última das noites solitárias
criarei tua nova imagem;
não continuarás a mulher de antes,
que o amor-romântico havia criado
e eu, poeta alucinado, acabei por destruir ...

E vou te reconectar,
parte por parte,
redescobrindo teus porquês ...
Parte por parte,
montarei um quebra-cabeças de ti.

Crescerás devidamente estrofada
nos melhores versos que eu puder compor,
nascerás da miscigenação das raças da minha terra

Ah! eu preciso te reviver,
recriar, repensar ...
- Eu te sonhei remusicada noutras notas

E antes do fim dos nossos tempos,
do fim das nossas possibilidades de encontro,
do fim das nossas pegadas
vou te sentir,
parte por parte ...

E, mais viva do que antes,
serás não apenas a musa distante,
mas a própria criação 

(Poema apresentado pelo "Quinteto Fora de Si", e, posteriormente, pelo próprio autor, em recitais realizados em Niterói em 1987. Apresentado também nos eventos comemorativos ao Dia Mundial de Luta Contra a Aids, em Itaboraí, em 1998).