FORÇA DE LIAMES
Há um dom a movimentar o mundo,
uma força de liames que puxa a água
para junto da chama, não receando apagá-la.
Há uma alma, uma flor, uma seta apontando
para o coração do centro da terra.
Urge senti-la, afagá-la.
Essa bateria carregada de ilusões
azuis, roubadas aos céus e ao mar,
esforça-nos a ir, a avançar, não importa
nunca para onde, para que lugar.
Tem espírito bíblico, a sabedoria dos tempos,
o conhecimento de que por detrás de uma porta
está a sombra de um quarto por habitar.
É preciso sabê-la decifrar.
É um sol que vence todos os lamentos,
alcança as ameias, impõe-se nas torres
e vigia todo o horizonte, preso aos cuidados
de nos reconfortar no sebo das desgraças,
cercando todos os inimigos na ignorância,
derrotando-os sempre em todas as praças.
São o retrato da nossa infância.
Somos nós, congeminei. Somos nós
quem move esse barco, esse portento
de vigor que nos arrasta. É o que nos preenche,
essa luz indefinível, uma ideia, o que, como o vento,
nos leva por rumos desconexos a propalar a palavra,
esse brilhante estandarte com o ouro da poesia.
Agora sinto-o, vejo-o, como dantes não o via.
Há um movimento no mundo, na boca do homem.
E um eco pronto para repercutir a sua mensagem,
tão incansável e engenhoso que se repete, se reconstrói,
indefinidamente, sem jamais ceder a uma interrupção.
Corre nas veias, colore-se de sangue, pulsa no coração.
Disfarçar-se-á com as máscaras gregas e gritará
versos de amor - é o amor ao espelho - enquanto houver
universo, existir noite, chegar um novo dia.
José António Gonçalves
(inédito.18.09.04)