A VOZ ERA O MILAGRE DA LUZ
a voz era o milagre da luz
soando na noite a iluminar
a palavra e a dar sentido ao paraíso
que eco sairia do reflexo
desse apelo ao despertar do corpo
com o cheiro dos líquidos das flores
dos nevoeiros sobevoando o luar
com os contornos das casas e das colinas
do riso das mulheres nas encostas
lembrando o tempo a juventude
a graça de um sussurro um grito abafado
suspirando pela magia de uma carícia
pelo ritual vagaroso do sexo
nos recantos de um olhar vasculhando
sensações ocultas na memória?
carta de recordações ou cartilha de sobrevivência
carris de comboios a convocar o movimento
o balbuciar dos gestos o sinal que diz tudo
e o silêncio a implantar-se nas cercanias das eras
como se temesse tomar conta do mundo
e ficasse por ali entre o imaginar dos percursos
ao longo das jornadas que nunca terão lugar
no agitar dos lençóis ou nos rostos que suam
e choram marcados pelas ausências contínuas
e pelas intermináveis esperas
pelo que jamais acordará o que dorme
no mais profundo dos seres insaciados
depois sempre chegam os novos dias as cavalgadas
pelo respirar dos sonhos na proximidade do real
com o sabor amargo dos frutos que ornamentam
de desencanto os castelos de fumo e de solidão
onde nada parece ser possível e as ruínas assomam
a superfície das margens antes preservadas
para construírem as rimas dos hinos ao desejo
as barcas que atravessam qualquer mar e vencem
todas as distâncias sob a bandeira da esperança
perante o duro sofrimento dos quotidianos vazios
a voz aqui sublinho era o milagre da luz
apontando o rumo para a fuga da escuridão
na frieza absurda da paixão inalcançável
oculta nos obstáculos inventados pela cegueira
esquecido que está o sabor de um beijo
o calor de um abraço o eriçar da pele o toque
ao de leve e demorado de uma mão
que por vezes permanece vivo e abrasador
por uma vida inteira
sei: para isso bastaria que a sua energia
fosse bebida
no amor
José António Gonçalves
(inédito.14.10.04)