O Manfrenate* e eu
I
O Manfrenate pensou que eu podia
ser ele. Mas viu logo, não podia.
Sentiu pena, chorou;
pena não, não seria.
E chorou – se chorou – só um pouco,
muito menos que devia.
Não se estressou, não foi louco,
mas rezou a Ave-Maria.
E sem um descuido, tampouco,
no meio de alguma orgia,
pensou em mim enquanto, rouco,
cantava e se satisfazia...
A loura sem calça, serena,
a branca perna exibia;
no quarto com aquela morena,
ele se ensandecia,
enquanto a noite pequena
sozinha lá fora crescia.
E eu no meio da arena
de um mundo que não entendia,
e ele, encarando a cena,
no fundo sorria, sorria...
II
E aí o leão desafiado
viu que ele quase podia
colocar o leãozinho a seu lado
que, desdentado, perdia
a noção do que se tinha passado,
se é que noção existia...
O Manfrenate encarou tudo
na absoluta certeza de que
estava sentado na minha mesa,
no bar ao pé do meu prédio.
Estava ali no assédio
de a vida poder construir,
desafiar, conquistar, iludir.
Diante de mim seu semblante:
o louro cabelo ondulante,
o meigo olhar faiscante.
O meu olhar extasiado
com a concessão do presente:
a sua presença sentida
daquela forma envolvente.
Ele, incrédulo, me ouvia
e pensava possivelmente:
como pode esse cara,
que se acha irreverente,
ter mais brilho do que todos
cujo brilho reluzente
é muito mais que o dele
de teor indiferente?
Lembro apenas da sua presença
naquele mesa de bar.
Não sei se algo tomamos,
ele que saberia tomar
quantos e quantas quisesse.
Jamais poderia ousar
fazer o que ele fazia,
a não ser poder sonhar
em ser como ele um dia,
o que jamais ia vingar,
mas sonhar me comprazia.
É o que faço até hoje.
Rio, 09/05/2005
*Luis Manfrenate, um amigo como poucos ou nenhum, desparecido precocemente