O LAVRADOR
Chamo-me Muhongo, lavrador de Kasanji —
Este Hino que canto é último recado que sobrevém
Bruscamente, de lá dos rochedos e grutas ocultas
Qual imensa ressonância igualmente a descantar
Numa tensa ventada lançada em advertência —
Aqui tendes a Sombra sagrada que hoje me oferta
Um punhado de handu n'alfombra enrubescida
— Alimento sementes co' meu sangue camponês
Para que se multipliquem raízes no solo árido
A minha lavra não a encha de pegadas!
E o bramido em Coro que se ouve vindo das vagas
Remotas
Remodelando as estações co' o passar de cada
Pássaro peregrino, não mais é batuque tocado a rebate
Mas a voz do búzio que invoca o Raio-serpente
Herdei a calosidade da árvore desértica
Flores de cacto, e o braço maciço da enxada —
Meu suor banha o tempo privado de chuva
A minha lavra não a encha de pegadas!
Oh Kisola! nossa alta providência — eu clamo por Ti:
Que a nuvem reapareça na fímbria do firmamento
Que o sonho verde brote do seio da terra
Em véspera da Tua chegada
E que a Sombra, já elíptica, dislize pela trilha abaixo
Enquanto eu fico quieto co' meu handu de perto
Bebendo o cheiro da seiva que emana
Do amanho e cultivo em terras agrestes!
Sou filho alheio dos espíritos do mato cerrado
Ansiando pelas primeiras colheitas do ano
Que recheiam panelas de hulukuku para alimentar
Almas dos mortos mediante os vivos nos óbitos
— Cuidado —
A minha lavra não a encha de pegadas!
Kasanji = baixa de Kasanji (Angola).
Handu = amuleto que molesta os que roubam mantimentos
em lavras alheias.
Hulukuku = mantimentos que no dia do óbito do lavrador
se come e se distribui aos presentes no funeral.
Escrito originalmente em Kimbundu.
Tradução portuguesa do Autor.