DEPOIMENTO
(Ao som de kakoxi)
Venho da terra do Rei ferreiro, tenho comigo provas no alforge
Deixem-me narrar feitos da minha estranha viagem
E emendem-me no que eu disser errado — oh albergueiros meus
Emendem-me, por favor!
Dias passados, antecipei-me às montanhas equidistantes
Ao vasto horizonte pintalgado em tons de frutos e fogos
E chamei pelas almas pantanais do planalto suspenso
Lá no curvejar do tempo que sucede à chuva precipitada
Algures, com o transcorrer das horas, o Animal que respira
Pelas guelras emergia da alva saraivada, um pouco de cada vez
E dessarte planava alto mediante o ancho céu em forma de arco-íris
Que de então para cá trago à memória como um amuleto—
Ao longe da campina, o Leopardo recorria às suas artimanhas
Mas bem cedo cedeu às ordens do meu génio caçador
Naquela mesma noite do quarto minguante que divagava
Com devagar e em seguida se perdera em sua própria amplidão
E o Leão! O leão de peleja emudeceu de medo ao me avistar
E deu lugar a que os antílopes pudessem pastar comodamente
Diante da luz embebida em águas, após o que retomei
A dura caminhada pelo mundo fora de forasteiros
Deixem-me contar feitos da minha viagem demorada
E por Deus, emendem-me no que eu disser errado!
Em plena savana, a Hiena ria sua infame risada de mofa
E ao pressentir minha sombra, tratou de fugir para uma gruta
Mas por cúmulo do azar que já lhe pairava sobre a cabeça
Emaranhou-se nas silvas secas da mesma savana
Em simultâneo, um tal de Chacal atrevido desandou por aí
No entanto, o arbusto embaraçou-se-lhe na perna traseira
E ficou preso tal-qualmente, enquanto as aves da rapina
Escutavam-lhe o berro de fio a pavio, na certa —
Ao chegar no sertão adentro e arfando de enorme canseira
O Sol comovido encabritou-se ao de cima da cónica colina
Para me acolher por perto com braços em arco
Venho da terra de Ngola Musudi e trago honra na palavra
(Fora o sacro Panga que, por uma teia de estradas e sendas
Do matagal, orientou-me até aqui)
Oh filhos da terra argilosa; ramagens de Kilembe na margem
Deixem-me axaltar feitos da minha tão atribulada viagem
E em nome de Kibuku, emendem-me no que eu disser errado—
Mahezu!
Kakoxi — espécie de violino com três cordas
Ngola-musudi — primeiro rei do Ndongo (Angola)
Panga — pássaro de cor verde e vermelho
Kilembe — mit. árvore da saúde; do bem e do mal
Kibuku — deus da sorte
Mahezu — fórmula tradicional com que se finaliza um conto; discurso ou notícia.
Escrito em Kimbundu.
Tradução portuguesa do Autor.