REPARA AMOR
Repara, amor, no além...
As nuvens correm céleres, entre azul,
mar azul sem sombras ocultas
nas etéreas masmorras do tempo,
e não são perseguidas pela famélica
e feroz voracidade de cães raivosos.
Prófugas, em famígera simpatia,
juntam-se, umas às outras, no preâmbulo
dum gélido, viscoso beijo.
Cada nuvem, semidolente, chora de frio,
um frio metálico e terrível, de saudades
pelo húmus sepulto na prolígera,
escura e álgida terra.
Como detestam os afagos solares!...
Heliófugas por sensibilidade timpânica,
versátil e capilar!...
Nos dias plúmbeos, pluviosos, derramam
purulentas cores na derme terrestre,
agridem os ridentes cendais da natura,
laceram o polínico hímen solar,
com frígidas carícias de pérfidos amantes...
As plantas dobram-se em plangente
flexão, de mímica suplicante...
Os homens, introvertidos e insípidos, mascam
tristezas inopinadas e reflectem
tonalidades lúgubres, lívidas, funéreas...
Agora pergunto, amor:
Serão as nuvens conscientes
de tão estranhas reacções?!...
Porque nos atormentamos, sangrando
as realidades que sobrevoam
as paroxísticas razões?!...
Deixemos, aos pobres espíritos errantes,
as minudentes e ontológicas explicações
da matéria e do espírito.
(In Jornal das Aves, 29/06/74)