FADO MAIOR
Do lado de lá,
separado de mim por esse vidro gelado,
o calor amarelece folhas velhas
nas árvores antigas.
Soltas, passam esvoaçando como idéias loucas,
sumindo pelo canto do olho,
sem que chegue a apreciá-las
nem componha com elas um lindo quadro
de melancolia outonal.
Os olhos prendem-se nos detalhes
mais imediatamente captáveis
sem focá-los com rigor.
Sei que há carros subindo a montanha
em brilhos intermitentes,
com interrupções de bambú.
Um buzina rouca sobrepõe-se
a um vento que ainda não tinha escutado,
cantando uma paisagem familiar
onde facilmente imagino os urubus
que sei estarem lá,
planando entediados,
como sempre.
Do lado de lá,
separado de mim por esse vidro gelado,
o meu espírito espalha-se
por uma miríade de momentos
desse espetáculo ao anoitecer.
Sente a ansiedade das criaturas noturnas,
prestes a acontecerem
na escuridão que se anuncia.
Entende-lhes a fome visceral,
a vontade primeva,
maior que todas as sedes e apetites,
sempre aquém da saciedade possível.
Sente-lhes as urgências fantásticas
avolumando-se, crescendo,
tornando indomável nos seus âmagos
a partícula selvagem feita febre,
reclamando ritos de sangue,
golpes, carne em lutas...e amor.
Do lado de lá,
separado de mim por esse vidro gelado,
um fado maior que qualquer destino
aplica-se, ocorre...
e, ás vezes, chama-me
insistentemente...
mARÇO, 2008