Espelho

Passando pelos pólos
a contemplar geleiras,
cadeias gigantescas de montanhas
que se formaram muito antes de eu existir,
e que decerto existirão
e resistirão serenas
quando eu não for do mar senão uma gota,
uma molécula,
um nada mais,
eu me sinto, como elas, mais sereno,
pois estou ao largo da existência humana
e já não sou mais água
a mudar de forma a cada copo,
sou gelo, inamovível
e nem o sol do meio dia pode me afetar,
e não sou mais a abelha que produz o mel
mas sou aquela que te crava o ferrão na pele,
e como rosa, não te denuncio a beleza,
mas sim o espinho a te ferir,
e não faço mais canções
produzo apenas ultra-sons que te ensurdecem
e te entontecem
e aquela poesia que um dia te encantou
iria hoje te assombrar
e te fazer chorar,
e para aumentar a tua dor
não posso esquecer de te lembrar
que tudo foi um dia diferente
e eu de verdade te amei.

Mas eu bem sei que tu não sabes,
e nem eu mesmo saberia,
não fosse um dia eu achar um espelho
e nele, ao me mirar, não ver o meu rosto
e nem ver nele nada do que eu era
(e veja que nem foi muito o que eu já fui)
na verdade ao me mirar eu não vi nada
como um vampiro
e descobri tranqüilo que eu perdera a essência
e que me restara apenas a consciência
de que, para sempre, sem vida eu viveria
como o gelo das geleiras
que passando pelos pólos um dia eu vi.

Lucas Castro
Enviado por Lucas Castro em 26/11/2007
Reeditado em 13/10/2008
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