Um livro chamado “Perdão”
Eu,
Que há muito parei de escrever,
Continuei a criar histórias
E engana-se aquele que pensa que as folhas em branco nada têm a amarelecer...
(Tenho um livro desses, extenso, que trago sempre comigo
para a idade a prevenção é o melhor dos remédios (ansiolíticos)
Tê-lo ao alcance do desespero pra não esquecer do que não vou lembrar, é um alívio - até a página 2)
PÁGINA 2
Revisitando esses papéis encontrei o que não deveria: escritos de um heterônimo que à época me servia para não me deixar afogar na nascente de inseguranças da adolescência. No capítulo 2 “MARIA”, consta que você apareceu no meio de mais um dia qualquer - confesso que fiquei surpresa mas não necessariamente contente - Em verdade foi um tanto incômodo, eu, com meus super problemas infanto-juvenis lembro de consultar o relógio a cada palavra tua como quem fosse capaz de acelerar o evento para voltar ao trabalho e evitar chateações pois àquela altura, ainda que muito jovem, eu já sabia em que lugar no mundo eu estava. Eu sei que a preocupação com seus problemas reais não permitiu que notasse meu desinteresse, e isso faz muito sentido agora. Você não foi exatamente visitar a mim. Não havia nada prático que precisasse me comunicar ou dependesse de um movimento meu para se resolver, também não era uma saudade a ser sanada (passou longe disso, e eu senti, e foi estranho). Em última análise: nada interpessoal (não naquela ocasião, pois sim, nós tínhamos uma ótima convivência e nossos assuntos umbilicais próprios, e aquele definitivamente não era um deles). Custou até que sua voz baixa conseguisse chamar minha atenção, e isso ocorreu quando te ouvi falar pela primeira vez em 15 anos dos seus pais. Mais precisamente das saudades causadas pelas suas ausências e a decepção consigo mesmo do que havia feito ou negligenciado. Talvez teu desespero tenha lhe levado a pensar que eu, perdida no egoísmo de minhas aflições e imaturidade natural da pouca idade, pudesse compreender e mais, ser a porta-voz das vozes que invadiam sua cabeça no momento mais intenso da tua história, o fim.
Sim! Você só podia saber que eu portava o livro, onde hoje tenho gravados todos teus pedidos de desculpas, as tuas manchas de dor, rancor e da fraqueza de quem já perdeu todas as batalhas e deseja algum tipo de redenção divina. Foi tamanho o dilúvio que se seguiu dos teus sentimentos que saí eu mesma (aquela menina) toda manchada. E embora eu ainda esteja na estrada, seguindo seus passos, continuo a caminhar com meus sapatinhos de borracha - é que as pessoas ao redor não se interessam por essas histórias, não temos tempo para essas fragilidades hoje em dia, espero que entenda - e assim, que como um propósito, início hoje o volume 2, para assegurar que o sucesso de nossos fracassos tão semelhantes estará para sempre nas estantes do esquecimento profundo.
&lis
26/03/21