TRASPASSE POÉTICA
A poesia é o combustível da catástrofe,
serra a realidade em partes
e a costura em inobservâncias,
espreme as cruéis circunstâncias
até que o sumo seja tolerável,
prende as queixas no razoável,
exalta a cor vigorosa da chama
no silêncio da conflagração,
suga as palavras de quem ama
expelindo em abjeta construção
que ninguém lê ou entende,
que não compra, nem vende,
que no papel se prende
alheia à pragmática significação.
A poesia é a língua do inferno,
só os fala os pobres diabos
que se dedicam a contar verso
em algarismos arábicos,
inventam nomes pra essas troças
que com nada diz respeito,
é código para as coisas mortas,
para o desprovido de efeito,
estudam-na os vermes
que espalham na epiderme
a decomposição do belo,
consumindo o que é sincero
no processo verborrágico
de poetizar o próprio estrago.
A poesia, deem graças, é estéril,
não contagia, não deita e rola,
quando jorra é terra infértil,
quando avista, se cativa, só enrola
desprovida de avivamento, é tímida,
jamais propõe, cerca que sufoca,
ainda que chova só seca,
não ama, venera a própria forma,
desengana no modo espera,
se anda, quando perto, meia-volta,
diante do declive desespera,
covarde do que não se escreve
e que permanece descoberta,
pois a tinta não concebe.
A poesia come tudo, não dá nada,
é sumidouro do que há na alma,
não admite opoente, se devoto dela
oferece teu tributo, paga a coleta,
mata teu cordeiro, dá a parte décima
e não queira atrasar qualquer parcela
que se tomado de acúmulo
escreverás até o túmulo,
que te sirva de claro alerta
as letras miúdas expostas no Sarau:
amou-a de findar a primavera;
a flor murchou, a lua eclipsou,
restou, circunscrito, um sinal.
- Quem vos fala é o poeta!