Divagações insones
Quando nada mais restar sobrará apenas o essencial e o essencial será pouco; na verdade quase nada; mas será tudo o que realmente importará, o que terá valor.
Lá fora, conforme adentra a madrugada,
tudo se aquieta, o tráfego diminui, as vozes cessam e os risos se dissipam, apenas a velha madeira do telhado estala conforme esfria.
Aqui um cão ladra aos fantasmas da noite,
acolá outro responde, talvez para alguma coruja essa sentinela da noite, ou um pedestre bêbedo perdido na vida pela madrugada.
A lua se faz cheia, o céu está perturbadoramente límpido, o vento cessa derrepente e minha respiração soa mais alto
no silêncio que se imola.
O sono não veio essa noite e a cama perdeu o conforto; numa caneca a água quente vai extraindo a alma da erva, o cheiro do capim cidreira toma a cozinha, enquanto espero
contemplo a claridade pálida do luar no quintal.
Onde encontram-se os pássaros nesse momento?
Aqueles mesmos que aqui cantarão ao amanhecer efusivos e eufóricos.
Terão todos um lar pra onde regressam?
Quais os sonham dos que agora dormem?
E os ,que como eu, não conseguem dormir,
o que será que divagam.
Porque, o pensamento não respeita limites,
nem físicos,
nem morais,
nem ideológicos.
O pensamento é senhor dos homens,
os quais o tem, mesmo que muitas vezes em segredo.
Putz, o chá!
Lanço o sachê exaurido no lixo onde jaz as sobras consumidas do dia.
Sorvo os primeiros tragos ainda quente demais, o chá me aquece o estômago,
mas não o coração.
No silêncio da madrugada
as lembranças surgem.
Lembro-me de muitas coisas,
de coisas que não queria lembrar,
de coisas que achava não lembrar mais,
de pessoas,
momentos,
lugares.
Desisto de lutar contra as lembranças,
deposito a caneca sobre a pia.
No quarto me entrego ao abraço das cobertas, então finalmente adormeço e então sonho; porque no sonho podemos ousar,
ousamos voar, ser imortal,
ousamos até amar.
Lá fora o mundo segue...
segue a noite clara,
o cão ladrando,
o asfalto esfriando
e aqui eu sigo sonhando;
enquanto ainda há sonhos pra sonhar.