Fila do osso
Cenário incerto de uma guerra silenciosa
Onde o cancão pia
Lá é o ruim no ruim.
A miséria ressuscita a cada dia
A fome aperta e espera-se uma atitude
Não dá tempo pra pensar
O desespero quando bate
Impulsiona o animal faminto
Na imundície dos pátios
Ignoramos quem revira o lixo
Quem come o lixo
Quem fede a lixo
E assim, tornamo-nos uma sociedade lixo, aos poucos
Desprezado pela má sorte
De ser brasileiro
De ser brasileiro excluído
De ser cidadão de segunda classe
O corpo quer alimento e não tem
A alma quer afago, vem bofetada
A esperança quer um caminho
Só desacertos e contra mão
A fome berra alto, mas não incomoda
Os dos andares de cima não escutam
O ronco estridente do estômago
Não adianta nem fazer cara feia
Mais de dez por cento passam fome no país
Os poderosos não suportam que você possa comer todos os dias
As três refeições
Em Sampa, a dona de casa fulana de tal
Desempregada em situação de rua por dez anos
Mãe de cinco filhos também famélicos
Em uma dia desses por aí
Quando estes choraram pedindo comida e não tinha
Não pensou nem três vezes
Afanou dois pacotes de miojo
Uma coca cola quente
E um pacote de Quisuki de uma lojinha
Quando ia saindo de mansinho
Foi pega com a boca na botija
Levou uma cana pra aprender
Pra proteger o cidadão de bem
E não desrespeitar a meritocracia
Nem muito menos, o status quo
Mas ela falou que tava com fome
Ela falou que estava faminta
Ela falou que não tinha o que comer
E ainda teve a audácia de dizer que quer ser gente
De poder sonhar
Como pode?
Quem é que pode ser gente neste país?
O que é ser gente?
Isso aqui é um país ou um ajuntamento?
Ou é um pesadelo de quem não subiu no último apocalipse?
A gente não quer só comida.
Mas, quando nem comida se tem?
Podemos pensar em poesia?
Se ao menos pudéssemos escolher entre o feijão e o fuzil.
Entre a faca e a espada
Entre a bala e um pedaço caríssimo de charque
Entre a sopa de osso e o cozido de pés de galinha
Entre o asfalto e a poltrona
Entre o chão e a lona
Que merda de país é este?
Que fornece um terço da comida para o mundo todo
E marginaliza os seus de forma deliberada.
Se, pelo menos, eu pudesse retirar, de forma segura
E insuspeitável ...
Os meus vinte contos nos paraísos fiscais
Ou tivesse o nome limpo no agiota e no SERASA
Comprava um saco cheinho de pipoca Veneza
Dessas que é o almoço de muita gente em Recife ao meio dia
Cem dindins de côco, bem gelado, pra matar a fome da rafaméia da rua.
Pois, o povo com fome não pensa
O povo de bucho cheio, cresce
O povo alimentado escolhe
O povo desesperado vegeta e obedece
E não escolhe emprego nem faz greve
Muito menos reclama da mais valia.
Magal Melo 18.10.2021