A memória é o melhor esconderijo
O menino entrou numa casa velha com paredes carcomidas pelo tempo,
nas telhas de barro, aranhas
entreolhavam-se furtivas.
Quadros obsoletos no recinto
sorriam espantados para o homem
maduro estático sob redoma
das horas.
Na cozinha,
fogão a lenha empoeirado
perguntava quem era o homo aparvalhado
que ousava desembrulhar outrora.
Passei mão em pedacinhos de mim espalhados pelos cômodos do pretérito imperfeito.
Eu estava impregnado no bolor do fogão,
no limo do banheiro,
no piso vermelho do chão com gotas de monotonia, e
nas ruínas das paredes com cicatrizes
soltas pelos buracos de minhoca.
Podia ouvir gritos dos meninos lá fora a chamar-me para explorar infância.
Gatos, cachorros e patos
misturavam-se
feito gente no quintal
da simplicidade.
Podia ver "mãinha" assobiando
junto ao rádio de pilha
enquanto panela de pressão
chiava galinha ao molho pardo.
Não era uma casa qualquer na rua
paraíso, número trezentos e trinta e oito.
Era eu,
em cada cômodo vazio,
em cada instante que a memória
chacoalhava alumbramentos.
Ainda tinha cheiro de saudade
e ferrugem em cada pedaço de concreto,
podia ouvir vozes ecoando alegremente feito um galo na manhã desembestada.
Podia ouvir ranger do sol,
e os passarinhos tecendo crisálidas.
Era a terra natal que viera resgatar-me
dos escombros da metrópole,
dos esconderijos das dúvidas,
a limpar do peito vozes atarantadas ao pé do ouvido.
Eis o menino da rua de baixo; quieto, introspectivo,
a desenhar poesia no tempo imaginário;
não sabia que a morte era obtusa,
nem a dor _ inconsequente.
Eis o menino que atirava pedras no limoeiro
para saciar desejo repentino
de sentir gosto azedo
da natureza.
Eis o menino que pisava no pilão velho
Urucum
pra temperar dias brandos
sem por um momento pensar no futuro.
Eis o menino que ria bestamente preso a qualquer quimera aprazível
quando voltava pra casa descalço,
suado, magrelo lambendo pontas dos dedos sujos de sol poente_,
era ele a infância mais alegre do universo.
Hoje, órfão de amigos, de si mesmo,
não tem lar, não sabe ler sentimentos;
mora nos coração dos filhos que
semeou sobre a terra.
Demoliram a infância com tudo que havia dentro
quando ofertaram-lhe um futuro adulterado.
aBel gOnçalves