Não precisamos ser divindades
Não somos divindades antropomorfizadas,
mas criamos covas para o final esquecimento,
ou para colher a cálida luz dos sentimentos
nas feridas da terra forjadas pelo afago da enxada.
Somos covardes demais para não aceitar a morte,
Logo criamos mitos, crenças, religiões e passaportes.
Não somos divindades antropomorfizadas,
Já que não somos tão profundos como os rios,
Nem como os lírios nos damos aos ventos frios,
Da música das águas separadas nem somos o cio.
Ai de nós, raças de víboras! Somos homens fracos,
Cobrimos nossos vazios com outros áureos buracos.
Somos argila vaidosa, somos castelos de poeira,
E não anoitecemos como o brio das tardes cansadas,
Amanhecemos os mesmos pelos outonos das estradas.
Não somos como as estrelas do inalcançável firmamento
Que fulguram a essência própria de seus belos fundamentos;
Somos carnes funestas esquartejadas entre duas fronteiras.
E não poderíamos ter sido outra divindade,
Porque o que se mesclou ao nosso torpe corpo
Foi o medo, o barro, o suor e os trabalhos rotos.
A inexistência é a senda de nossa substancialidade,
(o sonho só sonha no sono de nossa fatuidade)
E ao abrir os olhos lá está a tua grande efemeridade.
É verdade! Jamais seremos velhas ou novas divindades,
Nem parimos campos para o nosso esquecimento,
Nós todos somos miseráveis e tristes nos prados do vento.
Deuses pagam nossos débitos para criarem novas faturas?
O sangue do justo derramado plantou ilusões e arquiteturas
De um reino pleno e tão imortal quanto nossas conjecturas.
Quando a aurora for brilhar além dos vales e montes,
O tempo despertará em teu olhar tal indizível realidade:
Somos finitos e sozinhos, mas não precisamos ser divindades.
Isso mesmo! Em tuas mãos o amor pode ser fonte de vida:
Pequena fagulha, monótona, reles, frágil; mas ainda assim bonita,
O infinito surge ao se viver nossa ínfima e grande humanidade!