LEMBRO

Lembro-me de como as manhãs chegavam de surpresa,

como se fossem um degrau, logo depois da noite,

inevitáveis e não queridas...

Os passos arrastavam-se contrariados,

rumo ás horas do dia nascente,

em gestos de desencanto, pesados,

relutantes finais desse sortilégio, ainda tão presente,

dessa mistura fremente de brilhos e sons,

com olhos onde luziam recentes estrelas,

e amigos, e gestos, amores e dons,

e palavras nos lábios, a dizê-las...

Sonhava de dia, enquanto passavam, lentas,

essas horas doloridas, obrigatórias,

sem ventos, nem tempestades ou bonanças,

apenas rumos firmes, cardeais,

em bençãos e cruzes, de cruzados sinais,

escritos em fés e nas porfiadas esperanças

de gentes que achava estranhas, apenas cantando glórias,

totalmente alheias a dificuldades ou tormentas...

Mas a noite era o meu espaço e o meu terreno,

onde escutava meus passos, que ecoavam fortes

nesses caminhos de mistérios variados,

por onde, pela mão, me levava a vida

em ais apenas esboçados, de paixão sentida,

e amores superlativos, em mágicas acalentados ,

todos eles como imensos ou pequenos nortes,

onde o acaso, sempre subtil, me chamava, em discreto aceno...

Hoje, ergo os braços, ás manhãs despontando,

sabendo-me menos único, mas mais forte e profundo,

riscado de muitas marcas e nem sei quantas mais cicatrizes,

olhando as coisas mudarem e ganharem outras cores,

perdendo-me nelas, em sempre novos amores,

de renovadas sombras, e inexplorados matizes,

enquanto crio e repinto o que é agora o meu mundo,

num processo eternizado, em que me perco e me vou achando...

Outubro 2007