A lenda do Lobisomem
Em boa parte da infância, morei em uma casa em frente a uma feira livre. Tratava-se da mais famosa do estado que, desde 1958, funcionava aos domingos. Como toda criança que dormia cedo, acordava todos os dias por volta das seis da manhã. Aos domingos, dia de feira, tão logo pulava da cama, abria a janelinha da porta de madeira. Ela dava para a rua e eu sabia que o dia estava iniciando à medida em que diminuíam os barulhos das batidas de ferro e madeira das barracas sendo montadas. Em frente a essa casa, há pelo menos 30 anos (minha idade), o mesmo feirante coloca sua barraca de frutas, legumes e verduras. Os alimentos são produzidos em seu próprio sítio, numa pequena cidade das montanhas. Porém, confesso que até hoje não sei o nome desse – hoje, senhor - feirante. E não é por desdém de rapaz da cidade. Até porque aquele homem marcou a minha infância.
Acontece que, naquela época, o homem me foi apresentado somente como “o Lobisomem”. E embora ele tenha, recentemente, dito o seu nome, lembro somente da alcunha “Lobisomem”. Acho, de verdade, até que seu nome é Alcione, mas talvez tenho essa sensação porque há proximidade fonética justamente com o maldito Lobisomem, que tanto temi na infância.
Quando eu abria a janelinha da porta e constatava que estavam arrumando as barracas, já queria tomar café e ir para a feira cumprimentar os transeuntes e conhecidos. Nos tabuleiros do Lobisomem, que até hoje são dispostos naquela feira, se via banana, mandioca, laranja, limão, chuchu, cenoura, jiló, quiabo, mel, melaço etc. Mas os carros-chefes do feirante eram o inhame, que, por amizade, era dado para que minha mãe fizesse para mim, e a cachaça, consumida pelo Lobisomem desde as primeiras horas da manhã.
Acho que porque fui uma criança muito “pra frente”, apesar da extrema timidez no começo de qualquer relação, havia o risco de me empolgar com a “passassão” de pessoas e coisas e desbravar o movimento de rua sem um adulto supervisionando. Por isso, um tio, que também era frequente na cachaça e na feira, foi o primeiro a me revelar que aquele alemão magro, de óculos de fundo de garrafa e que falava em um português meio grosseiro e embolado, não era um sujeito qualquer. Eu, questionador que era, ficava me perguntando. Como seria possível um homem que era bom, que fornecia inhame de presente para que minha mãe fizesse sopa, que me permitia ficar brincando de vendedor em sua barraca, se irritado, se transformaria numa espécie de cão (ou lobo) e homem? Lobisomem. Perdia os bons atributos de homem e pegava o lado selvagem do cão. Desde aquela época, criei uma ligação ambígua com o Lobisomem. Medo e amizade. Era um sentimento de amizade com desconfiança. Medo de aprontar na feira e me deparar com a sua condição de cão.
Com o passar dos anos, fui morar em outros bairros e me tornei menos frequenta na feira, de modo que o medo da transformação do homem em cão foi desaparecendo. Já no início da vida adulta, voltei a morar no mesmo bairro, desta vez, na rua de trás da feira. Era moço formado, sem medo dos perigos da noite e, por isso, continuava cumprimentando o velho amigo Lobisomem no início da manhã, mas, agora, quando eu voltava da farra da noite anterior. Os carros-chefes da barraca continuavam sendo o inhame, que o idoso Lobisomem deveria comer para continuar forte como antes, e a cachaça, que agora, assim como ele, eu ainda consumia nas primeiras horas da manhã.
Em uma dessas ocasiões de cumprimentar o Lobisomem na volta dos bares, pela primeira vez, dei-me conta do seu lado homem. Naquela manhã, ele me perguntou para o que eu tinha “dado na vida”. Respondi que tinha me formado Historiador, professor de História. Para o meu espanto, chorando, ele veio me perguntar se eu podia escrever a história de sua cachorrinha. Relatando-me, chegou a citar o nome do animalzinho. Bêbados, se ele não tivesse chorando, era bem capaz que eu riria de sua simplicidade.
Segundo descrevia chorando copiosamente, certo dia, ao voltar da feira, não sem umas na cabeça, não viu que a sua cachorrinha tinha se achegado ao carro para recebê-lo – e ele me dizia que ela sempre ia pulando de alegria quando chegava em casa. Por sua distração, passou com o carro por cima da bichinha, tendo matado aquela que afirmava ser especial. Eu, que a vida toda temi que o homem se tornasse um lobo, não imaginava que ele se mostraria mais humano, justamente por causa de um cão.
Entre constrangido e profundamente comovido, disse que, sim, podia escrever a sua história com a cachorrinha e fui para a casa curar o porre, fingindo que aquele episódio não significou nada para mim.
Hoje em dia, ainda cumprimento aquele homem. Extremamente mudado, em toda oportunidade, ele me questiona de forma serena se eu já aceitei a Jesus e reforça que agora não é mais o Lobisomem, mas um servo do Senhor. Nunca mais falou da cachorrinha e tampouco bebeu cachaça. Cerca de seis a sete anos, estou aqui pensando na teoria que devo aceitar para escrever a sua história. Na disputa entre o lobo e o homem, vencera o primeiro. Sejamos menos antropocêntricos. O cão que domesticou o homem.